O silêncio que nos consome: a epidemia silenciosa da saúde mental em Portugal

O silêncio que nos consome: a epidemia silenciosa da saúde mental em Portugal
Há uma epidemia que se propaga em silêncio pelos escritórios, escolas e lares portugueses. Não aparece nas estatísticas oficiais com a mesma dramaticidade das doenças cardíacas ou do cancro, mas está a corroer a nossa sociedade de forma implacável. A saúde mental tornou-se o elefante na sala da saúde pública portuguesa - todos sabem que está lá, mas poucos se atrevem a falar sobre ele.

Nos últimos meses, percorri consultórios de psicólogos, serviços de psiquiatria hospitalar e grupos de apoio espalhados pelo país. O que encontrei foi um retrato preocupante de um sistema à beira do colapso. "Temos listas de espera de seis meses para primeira consulta", confessou-me uma psicóloga clínica de Lisboa que preferiu manter o anonimato. "As pessoas chegam ao limite antes mesmo de conseguirem ser atendidas."

Os números contam apenas parte da história. Segundo dados recentes, cerca de 23% dos portugueses sofrem de uma perturbação psiquiátrica, sendo a ansiedade e a depressão as condições mais prevalentes. Mas estes são apenas os casos diagnosticados - a realidade escondida é muito mais vasta e complexa. Nas empresas, o presenteísmo - estar fisicamente no trabalho mas mentalmente ausente - tornou-se a nova normalidade, custando milhões em produtividade perdida.

O que torna esta crise particularmente insidiosa é o estigma que ainda a rodeia. "Em Portugal, continua a ser mais fácil dizer que se tem uma úlcera do que uma depressão", explica Miguel Santos, coordenador de um programa de saúde mental comunitária no Porto. "As pessoas têm medo de serem vistas como fracas ou incapazes, especialmente no ambiente de trabalho."

Nas escolas, o cenário não é mais animador. Adolescentes enfrentam níveis recorde de ansiedade e burnout académico, enquanto os serviços de psicologia escolar estão sobrecarregados. "Temos um psicólogo para cada 1000 alunos, quando o recomendado seria um para cada 250", revela uma orientadora educacional de Coimbra. As consequências desta negligência manifestam-se em crises de pânico antes dos exames, automutilação e, nos casos mais extremos, ideação suicida.

A pandemia funcionou como um acelerador desta crise, mas não foi a sua causa original. As raízes são mais profundas e estão entrelaçadas com transformações sociais mais amplas: o isolamento crescente nas cidades, a precariedade laboral, a pressão constante das redes sociais e o colapso das redes de apoio familiar tradicionais. "Vivemos na era da conexão permanente, mas da desconexão humana", reflete a psicóloga Sofia Mendes.

Nos hospitais, os serviços de psiquiatria enfrentam o seu próprio calvário. Falta de camas, profissionais exaustos e um fluxo interminável de casos urgentes criam um ciclo vicioso de sobrecarga. "Muitas vezes, temos de dar alta a doentes que ainda precisam de acompanhamento intensivo porque precisamos da cama para casos mais graves", desabafa um enfermeiro psiquiátrico de um hospital central.

Mas há luzes no fim deste túnel. Movimentos de base estão a surgir por todo o país, criando redes de apoio entre pares e desconstruindo o estigma através da partilha de experiências. Empresas progressistas começam a implementar programas de bem-estar mental que vão além do mero cumprimento legal. E na Assembleia da República, discute-se finalmente uma estratégia nacional para a saúde mental que possa responder às necessidades reais da população.

A verdade inconveniente é que a saúde mental não é um problema individual, mas coletivo. Requer uma resposta igualmente coletiva - que envolva escolas, empresas, comunidades e famílias. "Precisamos de parar de tratar a saúde mental como um luxo e reconhecê-la como uma necessidade básica", defende o psiquiatra Rui Costa. "Investir em prevenção hoje significa poupar sofrimento e custos amanhã."

Enquanto sociedade, enfrentamos uma escolha: continuar a ignorar o sofrimento silencioso à nossa volta ou abraçar a vulnerabilidade como parte da condição humana. A cura para esta epidemia não está apenas em mais psicólogos ou mais medicamentos, mas na criação de uma cultura onde seja seguro não estar bem. O primeiro passo - e talvez o mais difícil - é quebrar o silêncio que nos consome.

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