O silêncio que nos adoece: como a solidão está a redefinir a saúde pública em Portugal

O silêncio que nos adoece: como a solidão está a redefinir a saúde pública em Portugal
Num pequeno apartamento em Lisboa, Maria, de 72 anos, conta os dias pelo número de vezes que o carteiro passa. Às vezes, inventa encomendas só para ter alguém com quem trocar duas palavras. A sua história não é única - é o retrato de uma epidemia silenciosa que atravessa gerações e geografias, redefinindo o que entendemos por saúde pública em Portugal.

Os números contam uma história preocupante. Um estudo recente da Universidade do Porto revela que 36% dos portugueses com mais de 65 anos vivem situações de solidão severa. Mas este não é apenas um problema dos mais velhos. Entre os jovens adultos, os índices de isolamento social triplicaram na última década, segundo dados do Instituto Nacional de Saúde.

O cardiologista Pedro Silva, do Hospital de Santa Maria, explica que a solidão crónica tem efeitos fisiológicos mensuráveis. "O organismo de uma pessoa solitária produz níveis mais elevados de cortisol, a hormona do stress. Isto leva a inflamação crónica, aumenta a pressão arterial e acelera o envelhecimento celular. Estamos a falar de um factor de risco comparável ao tabagismo."

Na prática clínica, os médicos começam a encontrar padrões alarmantes. A solidão está associada a um aumento de 29% no risco de doença cardíaca e 32% no risco de AVC. Os mecanismos são complexos: desde alterações nos hábitos alimentares até negligência na toma da medicação, passando pela redução da actividade física.

Mas há mais. A neurocientista Ana Lopes, do Instituto de Medicina Molecular, estuda como o isolamento social afecta a estrutura cerebral. "O cérebro de pessoas cronicamente sós mostra alterações nas áreas relacionadas com a cognição social e a regulação emocional. É como se o músculo social atrofiasse por falta de uso."

A pandemia acelerou tendências que já vinham em gestação. O teletrabalho, embora conveniente, criou novos desertos sociais. João, um programador de 32 anos, descreve a sua rotina: "Passo dias inteiros sem falar com ninguém pessoalmente. As reuniões são por videochamada, a comida chega por entrega, o exercício faço-o em casa. Perdi a espontaneidade dos encontros casuais."

As consequências económicas são igualmente significativas. Um relatório da OCDE estima que os custos da solidão para o sistema de saúde português rondam os 400 milhões de euros anuais. Isto inclui consultas mais frequentes, internamentos mais longos e tratamentos mais complexos.

As cidades portuguesas, outrora conhecidas pela sua vida de bairro, estão a transformar-se. As varandas onde se conversava ao final da tarde dão lugar a janelas fechadas. As mercearias de bairro, onde se trocavam novidades, são substituídas por supermercados self-service. A arquitectura urbana parece cada vez mais desenhada para o isolamento.

Contudo, há esperança. Em Coimbra, um projecto pioneiro está a mostrar resultados promissores. "Cafés ConVida" reúnem pessoas de diferentes idades para conversas regulares. Os participantes mostram melhorias significativas nos indicadores de saúde mental e física após seis meses de participação.

No Porto, uma aplicação desenvolvida por estudantes da Universidade do Porto está a conectar vizinhos para actividades simples: desde caminhadas conjuntas até trocas de livros. A adesão surpreendeu os criadores - em três meses, já tinha mais de 10.000 utilizadores activos.

As empresas começam a perceber o impacto da solidão no local de trabalho. Uma multinacional com sede em Lisboa implementou programas de mentoring intergeracional e espaços de convívio obrigatórios. Os resultados? Redução de 18% no absentismo e aumento de 12% na produtividade.

Os sistemas de saúde também se adaptam. No Algarve, os centros de saúde começaram a incluir perguntas sobre conexões sociais nas consultas de rotina. Quando identificam situações de isolamento, activam redes de apoio comunitário.

A tecnologia, muitas vezes apontada como causa do problema, pode também ser parte da solução. Plataformas digitais que facilitam encontros presenciais, em vez de os substituir, estão a ganhar terreno. O segredo, segundo os especialistas, é usar a tecnologia como ponte, não como muro.

As escolas têm um papel crucial na prevenção. Programas que ensinam competências sociais desde cedo podem ser a vacina contra a solidão futura. Em Braga, uma escola básica implementou "aulas de conversa" onde os alunos aprendem a escutar activamente e a iniciar diálogos.

O desafio é complexo e multifacetado. Requer intervenções a nível individual, comunitário e político. Mas os especialistas são unânimes: reconhecer a solidão como questão de saúde pública é o primeiro passo para a enfrentar.

Enquanto isso, Maria descobriu o grupo de tricô da sua freguesia. Agora, as suas medidas de tempo já não são os passos do carteiro, mas os pontos das suas malhas e as histórias que ouve enquanto as tece. É um pequeno passo, mas significativo - um fio que a liga novamente ao mundo.

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