O silêncio que mata: como a saúde mental masculina continua a ser negligenciada em Portugal

O silêncio que mata: como a saúde mental masculina continua a ser negligenciada em Portugal
Nos cafés de Lisboa, nos escritórios do Porto, nos campos alentejanos, repete-se o mesmo ritual secular: homens que calam as dores da alma enquanto discutem futebol, política ou negócios. A epidemia silenciosa da saúde mental masculina continua a ser um tabu social em pleno século XXI, com consequências devastadoras que as estatísticas nacionais teimam em comprovar.

Dados recentes do Instituto Nacional de Estatística revelam que os homens portugueses têm uma taxa de suicídio três vezes superior à das mulheres, um número alarmante que espelha décadas de condicionamento social. "Aprendemos desde pequenos que chorar é sinal de fraqueza, que devemos resolver os nossos problemas sozinhos", confessa Miguel, um engenheiro de 42 anos que só procurou ajuda psicológica após um colapso nervoso no local de trabalho.

O sistema de saúde português, apesar dos avanços recentes, ainda apresenta lacunas significativas na abordagem à saúde mental masculina. As consultas de psicologia e psiquiatria no Serviço Nacional de Saúde têm listas de espera que podem chegar a seis meses, um período crítico para quem enfrenta crises emocionais. Muitos homens desistem à primeira dificuldade, retornando ao isolamento que os consome.

A revolução digital trouxe consigo novas esperanças e novos perigos. Apps de mindfulness e consultas online proliferam, oferecendo anonimato e conveniência, mas especialistas alertam para a falta de regulamentação destes serviços. "Não basta colocar um psicólogo à frente de uma câmara", adverte a Dra. Sofia Martins, psiquiatra no Hospital de Santa Maria. "A saúde mental exige acompanhamento personalizado e continuado".

Nos bastidores do poder, assiste-se a uma mudança lenta mas promissora. Empresas como a EDP e a Galp começaram a implementar programas de apoio psicológico para colaboradores, reconhecendo que a saúde mental impacta diretamente a produtividade e a inovação. No entanto, estas iniciativas ainda são exceção e não regra no tecido empresarial português.

O desporto emerge como um aliado inesperado nesta batalha. Figuras públicas como o treinador José Mourinho e o jogador Cristiano Ronaldo têm falado abertamente sobre a importância do equilíbrio emocional, quebrando estereótipos num país onde o futebol é quase uma religião. Clubes como o Sporting e o Benfica implementaram recentemente departamentos de psicologia desportiva, estendendo o apoio também às equipas de formação.

Nas escolas, a mudança começa a germinar. Programas de educação emocional estão a ser testados em colégios privados do Grande Porto, ensinando rapazes a identificar e expressar emoções desde tenra idade. "Trabalhamos para que a próxima geração não carregue os mesmos fardos emocionais que a atual", explica a professora Carla Mendes, pioneira nestes projetos educativos.

As redes sociais mostram-se uma faca de dois gumes. Se por um lado proliferam comunidades tóxicas que promovem a repressão emocional, por outro surgem movimentos como "Homens que Sentem", criado por um grupo de jovens de Coimbra que usa o Instagram para partilhar testemunhos genuínos e recursos úteis.

O caminho a percorrer ainda é longo, mas os primeiros passos já foram dados. Desde janeiro de 2023, o número de homens entre os 25 e os 45 anos que procura ajuda psicológica aumentou 17%, segundo a Ordem dos Psicólogos. Um sinal de que o gelo começa a derreter, gota a gota, na fortaleza emocional do homem português.

O futuro exige uma abordagem multifacetada: mais investimento público em saúde mental, maior envolvimento das empresas, educação emocional nas escolas e, acima de tudo, a coragem de continuar a falar sobre o que durante séculos se calou. Porque no silêncio sobre a saúde mental masculina, todos perdemos.

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