Num consultório minúsculo no centro de Lisboa, uma psicóloga com 20 anos de experiência confessa-me, com os olhos embaciados: "Atendo pacientes que esperaram nove meses por esta consulta. Nove meses a sofrer em silêncio, enquanto a ansiedade os consome. E sabes qual é a parte mais triste? Isto não é exceção. É a regra."
Esta realidade, escondida atrás de números oficiais que falam em listas de espera e taxas de cobertura, é a epidemia silenciosa que varre Portugal. Enquanto o debate público se concentra em cirurgias e medicamentos, a saúde mental continua a ser o parente pobre do Serviço Nacional de Saúde. As estatísticas são cruéis: segundo dados recentes, Portugal tem apenas 5,6 psicólogos por 100.000 habitantes no SNS, quando a média europeia ronda os 18.
Mas os números não contam a história completa. Não falam da mãe solteira do Porto que deixou de conseguir sair de casa porque a ansiedade a paralisa, e que espera desde março por uma consulta de psiquiatria. Não mencionam o estudante universitário de Coimbra que desenvolveu depressão durante a pandemia e que, quando finalmente conseguiu ajuda, descobriu que a medicação prescrita custava metade da sua bolsa de estudo.
O problema começa muito antes do diagnóstico. Num país onde "aguentar" é visto como virtude e onde frases como "isso é fraqueza" ainda ecoam em jantares familiares, o estigma continua a ser a primeira barreira. "As pessoas chegam aqui já em estado crítico", explica-me um psiquiatra do Hospital de Santa Maria, que pede anonimato. "Negaram os sintomas durante meses, anos até, porque cresceram a ouvir que problemas psicológicos são falta de carácter."
Nos corredores das unidades de saúde mental, encontro histórias que desafiam qualquer noção de dignidade humana. Salas de espera superlotadas onde pacientes com crises de pânico têm de partilhar espaço com dezenas de estranhos. Terapias interrompidas porque o terapeuta foi transferido para outro hospital. Prescrições de medicamentos feitas à pressa, sem acompanhamento adequado.
A situação é particularmente grave fora dos grandes centros urbanos. No Alentejo, algumas localidades não têm qualquer especialista em saúde mental. Os pacientes são obrigados a viajar centenas de quilómetros para consultas de 20 minutos, quando conseguem vaga. "É como pedir a alguém com uma perna partida que corra uma maratona para chegar ao hospital", desabafa uma assistente social de Beja.
Enquanto investigo este tema, descubro um paradoxo perturbador: Portugal é dos países europeus com maior consumo de ansiolíticos e antidepressivos, mas continua com uma das mais baixas taxas de acesso a psicoterapia. Estamos a medicar o sofrimento em vez de o tratar. "Damos comprimidos como se fossem rebuçados", critica uma farmacêutica de Lisboa. "Mas ninguém pergunta porque é que as pessoas precisam desses comprimidos em primeiro lugar."
As consequências desta negligência sistémica são tangíveis e medem-se em vidas. As taxas de suicídio em Portugal mantêm-se preocupantemente elevadas, especialmente entre homens com mais de 65 anos. Os custos económicos são igualmente devastadores: dias de trabalho perdidos, produtividade reduzida, gastos com medicamentos que poderiam ser evitados com intervenção precoce.
Mas há luzes no fim deste túnel sombrio. Em algumas regiões, projetos pioneiros estão a mostrar que é possível fazer diferente. No Norte, uma parceria entre centros de saúde e universidades criou um sistema de triagem que reduz o tempo de espera para consultas de psicologia de meses para semanas. No Algarve, terapeutas comunitários fazem visitas domiciliárias a pacientes que de outra forma ficariam isolados.
Estas iniciativas, porém, são gotas num oceano de necessidade. O que falta é vontade política e investimento sustentado. Enquanto escrevo estas linhas, o Orçamento do Estado para 2024 aloca menos de 4% da despesa total em saúde para a saúde mental - um valor que especialistas consideram "vergonhosamente insuficiente".
A solução, defendem os especialistas com quem falei, não passa apenas por contratar mais profissionais - embora isso seja urgentemente necessário. Passa por uma mudança cultural profunda. Por integrar a saúde mental nos cuidados de saúde primários. Por formar médicos de família para detetar sinais precoces de problemas psicológicos. Por criar redes de apoio comunitário que cheguem às pessoas antes que o desespero as engula.
No final da minha investigação, volto ao consultório da psicóloga de Lisboa. Ela mostra-me uma carta que recebeu de uma paciente que finalmente terminou a terapia após dois anos de tratamento. "Agradeço-lhe por me ter devolvido a vida", lê-se na última linha. São histórias como esta que me fazem acreditar que mudar é possível. Mas exigem que deixemos de tratar a saúde mental como um luxo para passarmos a vê-la como aquilo que realmente é: um direito humano fundamental.
Enquanto país, temos uma escolha a fazer. Podemos continuar a ignorar o sofrimento silencioso de centenas de milhares de portugueses, ou podemos construir um sistema que trate as pessoas com a dignidade que merecem. O tempo de decidir está a esgotar-se - e cada dia de inação tem um rosto, um nome, uma história interrompida.
O silêncio que mata: como a saúde mental está a ser negligenciada no sistema português