O silêncio que mata: como a saúde mental dos profissionais de saúde se tornou a pandemia invisível

O silêncio que mata: como a saúde mental dos profissionais de saúde se tornou a pandemia invisível
Nos corredores dos hospitais portugueses, por detrás das máscaras e batas brancas, esconde-se uma crise silenciosa que nenhum teste PCR consegue detetar. Os mesmos profissionais que nos salvaram durante a pandemia são agora vítimas de um esgotamento profundo, um cansaço que vai além do físico e penetra na alma. Esta é a história não contada daqueles que cuidam de todos, mas muitas vezes não têm quem cuide deles.

A investigação levou-nos a percorrer dezenas de instituições de saúde, desde o norte ao sul do país, onde médicos, enfermeiros e auxiliares nos confessaram, sob condição de anonimato, que estão a chegar ao limite. "Sinto-me como um carro que continua a andar mesmo depois de ter acabado a gasolina", confessa uma enfermeira de 34 anos do Hospital de São João. O seu relato é ecoado por dezenas de outros profissionais que já não reconhecem a própria vida.

Os números são alarmantes: segundo um estudo recente da Ordem dos Médicos, 72% dos profissionais de saúde apresentam sinais de burnout severo. A síndrome de esgotamento profissional não é nova, mas a pandemia funcionou como um acelerador brutal. As horas extra tornaram-se norma, o stress atingiu níveis epidémicos e o apoio psicológico continua a ser uma miragem na maioria das instituições.

O que mais surpreende nesta crise é o muro de silêncio que a rodeia. Muitos profissionais temem falar abertamente sobre a sua saúde mental, receosos de serem vistos como "fracos" ou "incapazes" de lidar com a pressão. Uma cultura tóxica de sacrifício extremo persiste em muitos serviços, onde pedir ajuda é ainda interpretado como falta de resiliência.

Mas há luz ao fundo do túnel. Unidades de saúde pioneiras, como o Centro Hospitalar Universitário do Porto, começaram a implementar programas de apoio psicológico específicos para os seus colaboradores. As sessões de grupo, o acompanhamento individual e as linhas de apoio estão a fazer a diferença, ainda que de forma lenta e insuficiente.

O maior desafio, segundo os especialistas, é mudar mentalidades. "Temos de deixar de ver a saúde mental como um luxo e passá-la a encarar como uma necessidade básica, tal como comer ou dormir", defende a psicóloga clínica Dr.ª Sofia Martins, que trabalha especificamente com profissionais de saúde.

As soluções passam não apenas por mais psicólogos nos hospitais, mas por uma reorganização profunda dos horários, por uma cultura organizacional que valorize o bem-estar e por políticas públicas que reconheçam esta crise como prioritária. O investimento na saúde mental dos profissionais não é um custo – é um investimento na qualidade dos cuidados que todos recebemos.

Enquanto isso, nas salas de staff dos hospitais, as conversas mudaram. Já não se fala apenas de casos clínicos ou de escalas de serviço. Aos poucos, vai-se quebrando o tabu. "Hoje consegui dizer aos meus colegas que precisei de chorar no carro antes de entrar para o turno", partilha um médico interno de 28 anos. É um pequeno passo, mas representa uma enorme vitória contra o estigma.

A verdade é que cuidar de quem cuida não é apenas uma questão de compaixão – é uma questão de segurança clínica. Profissionais exaustos cometem mais erros, têm menor capacidade de empatia e adoecem com mais frequência. A sua saúde mental está diretamente ligada à qualidade dos cuidados que prestam aos doentes.

Esta reportagem não é apenas sobre números e estatísticas. É sobre a humana condição daqueles que escolheram dedicar a vida aos outros. É sobre a necessidade urgente de lhes devolvermos o cuidado que tão generosamente nos oferecem. Porque por trás de cada bata branca há um ser humano que também precisa de ser salvo.

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