Ela chega sem fazer barulho, instala-se devagar e vai consumindo tudo por dentro. Não aparece nas estatísticas oficiais, não tem código na Classificação Internacional de Doenças, mas está a minar a saúde de milhares de portugueses. A solidão tornou-se a epidemia silenciosa do século XXI, um problema de saúde pública que os especialistas comparam ao tabagismo em termos de impacto na mortalidade.
Nos cafés de bairro, nos bancos de jardim, nos apartamentos com vistas para o rio, há cada vez mais pessoas que se sentem completamente sozinhas no meio da multidão. Um estudo recente da Universidade do Porto revela que 24% dos portugueses com mais de 65 anos se sentem sós, mas o fenómeno não poupa os mais jovens. A geração entre os 18 e os 35 anos apresenta números igualmente preocupantes, com 19% a reportar sentimentos de isolamento crónico.
O cardiologista Miguel Santos, do Hospital de Santa Maria, explica que a solidão não é apenas uma questão emocional. "Quando uma pessoa se sente isolada, o corpo entra em modo de alerta constante. Os níveis de cortisol disparam, a pressão arterial sobe, o sistema imunitário enfraquece. É como se estivéssemos permanentemente à espera de um ataque. A longo prazo, o risco de enfarte aumenta 29% e o de AVC sobe 32%."
A psicóloga clínica Carla Mendes, que coordena um programa de combate à solidão na região de Lisboa, descreve casos que a têm marcado profundamente. "Lembro-me de uma senhora de 72 anos que vivia no mesmo prédio há 40 anos e não conhecia ninguém. Passava os dias a ver televisão e a contar as horas até à próxima refeição. Quando começou a participar nas nossas atividades, disse-me: 'Há 15 anos que não tinha uma conversa a sério com alguém.'"
A tecnologia, que prometia conectar o mundo, está paradoxalmente a contribuir para este isolamento. As redes sociais criam a ilusão de companhia enquanto, na realidade, substituem interações significativas por contactos superficiais. Um estudo do Instituto de Ciências Sociais mostra que os portugueses passam em média 3,2 horas por dia em redes sociais, mas apenas 45 minutos em conversas presenciais.
Nas zonas rurais, o problema assume contornos ainda mais dramáticos. Aldeias inteiras estão a ficar vazias, com os idosos a sobreviverem num vazio social que os vai consumindo. Maria do Céu, 78 anos, vive sozinha numa aldeia do interior alentejano. "Os meus filhos foram para Lisboa há 20 anos. Vêm no Natal e no verão. O resto do ano é só eu e o silêncio. Às vezes, falo com as plantas para ouvir uma voz."
As consequências para a saúde mental são igualmente devastadoras. A solidão duplica o risco de desenvolver depressão e aumenta significativamente a probabilidade de surgirem perturbações de ansiedade. O psiquiatra Rui Coelho alerta: "Estamos a medicar a solidão com antidepressivos. Muitas das pessoas que chegam às consultas com diagnóstico de depressão estão, na realidade, a sofrer de isolamento social crónico."
Mas há esperança. Por todo o país, surgem iniciativas que tentam combater este flagelo. Os cafés comunitários, onde as pessoas podem ir tomar um café e conversar, têm tido resultados surpreendentes. Em Coimbra, o projeto "Café com Vozes" já ajudou mais de 300 pessoas a saírem do isolamento. "Não se trata apenas de beber um café", explica a coordenadora Ana Lúcia. "Trata-se de criar pontes entre pessoas que, de outra forma, nunca se cruzariam."
As farmácias estão também a assumir um papel crucial nesta luta. Muitas funcionam como pontos de encontro informais, especialmente para a população mais idosa. O farmacêutico João Silva, de Braga, conta que "muitos dos nossos clientes vêm mais pela conversa do que pelos medicamentos. Percebemos isso e criámos um cantinho com cadeiras onde podem esperar e conversar."
A pandemia veio agravar o problema, mas também trouxe consciencialização. Durante os confinamentos, muitas pessoas perceberam, pela primeira vez, o que significa viver em isolamento. "Foi como se toda a gente tivesse experimentado, em dose concentrada, o que alguns vivem há anos", reflete a socióloga Isabel Monteiro.
As soluções passam por uma abordagem multidisciplinar que envolva saúde, ação social e planeamento urbano. Cidades como Porto e Lisboa estão a repensar os espaços públicos para os tornar mais conviviais. Bancos virados uns para os outros em vez de para a rua, parques com mesas de piquenique, bibliotecas com espaços de conversa - pequenas mudanças que podem fazer uma grande diferença.
O desafio é complexo, mas urgente. Como nos diz o professor António Damas, especialista em saúde pública: "Estamos a gastar milhões em medicamentos para tratar doenças que poderiam ser prevenidas com mais conexão humana. A solidão não é um problema individual - é um problema de toda a sociedade."
Enquanto isso, nas ruas das nossas cidades e aldeias, continuam as histórias silenciosas de quem espera por uma palavra, um sorriso, um gesto que quebre o isolamento. Porque, no fundo, a cura para esta epidemia pode estar mais perto do que imaginamos - na simples vontade de estender a mão ao nosso próximo.
O silêncio que mata: a epidemia de solidão que está a destruir a saúde dos portugueses
