O silêncio que dói: como a dor crónica invisível está a moldar uma geração

O silêncio que dói: como a dor crónica invisível está a moldar uma geração
Há uma epidemia silenciosa a atravessar Portugal, uma que não aparece nos boletins epidemiológicos nem nos telejornais da noite. É a dor crónica, essa companheira indesejada que mais de três milhões de portugueses carregam diariamente como um fardo invisível. Nas filas do supermercado, nos escritórios, nas salas de aula – está lá, escondida atrás de sorrisos forçados e respostas automáticas de 'estou bem'.

A medicina tradicional ainda tropeça neste território nebuloso. Enquanto uma fratura óssea aparece radiograficamente nítida, a fibromialgia, as enxaquecas incapacitantes ou a dor neuropática permanecem fantasmas nos exames. 'Os doentes sentem-se frequentemente desacreditados', confirma a Dra. Isabel Santos, reumatologista no Hospital de Santa Maria. 'Chegam às consultas com pilhas de exames normais e um cansaço nos olhos que só quem vive com dor constante consegue reconhecer.'

Esta invisibilidade tem consequências sociais profundas. No local de trabalho, os colegas interpretam as ausências como preguiça. Nas relações familiares, a irritabilidade constante é mal compreendida. 'Perdi amigos porque cancelava planos à última hora', partilha Marta, 34 anos, que convive com endometriose há uma década. 'As pessoas pensam que é falta de interesse, quando na verdade alguns dias mal consigo sair da cama.'

A revolução está a chegar através da tecnologia. Apps de monitorização de sintomas, comunidades online onde os doentes partilham estratégias de sobrevivência, e até realidade virtual para distração da dor estão a criar novas pontes. No Centro Hospitalar Universitário do Porto, um programa piloto usa inteligência artificial para cruzar padrões de dor com fatores ambientais – descobrindo, por exemplo, que certos tipos de dor pioram com mudanças bruscas de pressão atmosférica.

Mas o verdadeiro avanço pode estar na forma como falamos sobre dor. Movimentos como o #DorVisível nas redes sociais estão a quebrar tabus. Jovens influencers partilham selfies com adesivos térmicos visíveis, profissionais bem-sucedidos falam abertamente sobre as adaptações que fazem para trabalhar. 'Estamos a passar da cultura do aguentar para a cultura do gerir', observa o psicólogo Miguel Andrade, especialista em dor crónica.

A nutrição revela-se um aliado surpreendente. Investigação recente do Instituto de Medicina Molecular mostra que dietas anti-inflamatórias podem reduzir a intensidade da dor em até 30%. 'Não é cura, mas é autonomia', explica a investigadora Carla Mendes. 'Quando um doente descobre que o gengibre no chá ou os ácidos gordos omega-3 do salmão lhe dão algumas horas de alívio, recupera uma sensação de controlo que a medicina tradicional muitas vezes lhe rouba.'

Os custos económicos são astronómicos. Um estudo da Universidade de Coimbra estima que a dor crónica custa à economia portuguesa mais de 2 mil milhões de euros anualmente em baixas médicas, perda de produtividade e tratamentos. E ainda assim, as unidades de dor nos hospitais públicos têm listas de espera que chegam aos oito meses. 'É uma ironia cruel', comenta o economista da saúde Rui Carvalho. 'Investimos menos no tratamento da dor do que perdemos com as suas consequências.'

Nas escolas, começa a surgir uma nova sensibilidade. Alguns agrupamentos no Algarve e na Madeira têm programas de formação para professores identificarem sinais de dor crónica em alunos – desde a criança que evita certas posições na cadeira ao adolescente cujas notas oscilam inexplicavelmente. 'Muitas vezes diagnosticam-nos como preguiçosos ou com problemas de comportamento', conta Leonor, 16 anos, com síndrome de Ehlers-Danlos. 'Quando finalmente perceberam que era dor, mudou tudo.'

O futuro pode estar na personalização extrema. Testes genéticos começam a prever respostas a analgésicos, evitando o doloroso processo de tentativa e erro que muitos doentes enfrentam. Na Suécia, já existem 'passaportes da dor' – documentos que os doentes levam a novas consultas, poupando-lhes a exaustiva repetição da sua história clínica. Em Portugal, a Sociedade Portuguesa para o Estudo da Dor está a desenvolver um projeto semelhante.

O que esta epidemia silenciosa nos está a ensinar, fundamentalmente, é sobre empatia. Sobre a importância de perguntar 'como estás realmente?' e de ouvir a resposta para lá das palavras. Sobre reconhecer que a dor alheia, mesmo quando invisível aos nossos olhos, é tão real quanto a nossa. Num mundo cada vez mais rápido e exigente, talvez precisemos de aprender a abrandar – para ver o que não se mostra, para ouvir o que não se diz, para cuidar do que não sangra.

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