O lado oculto da saúde mental em Portugal: quando o sistema falha e a sociedade ignora

O lado oculto da saúde mental em Portugal: quando o sistema falha e a sociedade ignora
Era uma terça-feira chuvosa quando Carla, 42 anos, funcionária administrativa em Lisboa, sentiu o chão desaparecer debaixo dos seus pés. Não era uma metáfora. O pânico instalou-se de forma tão visceral que o seu corpo deixou de responder aos comandos do cérebro. O coração acelerou, as mãos suaram, a visão turvou-se. No centro de saúde, depois de duas horas de espera, ouviu do médico: "É ansiedade. Tome isto e descanse". A receita era para um ansiolítico, sem qualquer referência a acompanhamento psicológico. Carla é uma entre milhares de portugueses que diariamente enfrentam o que muitos especialistas já classificam como uma crise silenciosa na saúde mental.

Os números não mentem, mas também não contam a história completa. Segundo dados da Ordem dos Psicólogos Portugueses, cerca de 23% da população sofre de uma perturbação psiquiátrica, mas apenas metade recebe tratamento adequado. O problema não está apenas na falta de recursos - está na forma como encaramos a doença mental. Continuamos a tratar a depressão, a ansiedade, o burnout como fraquezas de carácter em vez de condições médicas legitimas.

Nos corredores do Hospital Júlio de Matos, em Lisboa, encontramos a Dra. Sofia Martins, psiquiatra há 15 anos. "O que mais me preocupa não é a quantidade de casos, mas a gravidade com que chegam até nós. As pessoas esperam até estar no limite, até não aguentarem mais, porque ainda existe um estigma enorme em procurar ajuda psicológica", conta-nos, enquanto percorremos as salas de espera cheias de rostos cansados. "Temos listas de espera de seis meses para a primeira consulta em algumas especialidades. Seis meses pode ser uma eternidade para quem está a sofrer."

Enquanto o sistema público debate-se com carências crónicas, o sector privado floresce - mas a preços proibitivos para a maioria dos portugueses. Uma consulta de psicologia pode custar entre 50 e 80 euros, valores incomportáveis para famílias que mal chegam ao fim do mês. Criou-se assim uma espécie de apartheid na saúde mental: quem pode paga, quem não pode sofre em silêncio.

Mas há luzes no fim do túnel. Projetos inovadores começam a surgir, como o programa de telepsicologia implementado em alguns centros de saúde do Alentejo, que permite a doentes de zonas rurais terem consultas por videoconferência. Ou as equipas comunitárias de saúde mental que trabalham no terreno, indo ao encontro de quem precisa em vez de esperar que venham até elas.

A verdadeira revolução, porém, pode estar a acontecer nas escolas. Programas de educação emocional estão a ser implementados em algumas instituições, ensinando crianças e jovens a gerir emoções, a pedir ajuda, a reconhecer sinais de alerta nos outros. "É mais fácil construir adultos saudáveis do que reparar adultos partidos", defende Miguel Santos, psicólogo escolar no Porto.

Nas empresas, o panorama é igualmente preocupante. Um estudo recente da DECO revelou que 68% dos trabalhadores portugueses já experienciaram sintomas de burnout, mas apenas 12% falaram com os seus superiores sobre o assunto. O medo de ser visto como fraco ou incompetente ainda pesa mais do que o próprio sofrimento.

A solução, defendem os especialistas, passa por uma abordagem integrada. Mais investimento no Serviço Nacional de Saúde, sim, mas também campanhas de sensibilização que normalizem a procura de ajuda, políticas empresariais que promovam o bem-estar psicológico, e uma educação que prepare as pessoas para os desafios emocionais da vida moderna.

Enquanto isso, pessoas como Carla continuam a sua batalha silenciosa. "Aprendi que a saúde mental não é um destino, é uma viagem", confessa-nos, seis meses depois do seu primeiro ataque de pânico. "Alguns dias são bons, outros são difíceis. Mas agora sei que não estou sozinha, e que pedir ajuda não é sinal de fraqueza, mas de coragem."

Talvez seja essa a maior lição que precisamos de aprender como sociedade: que cuidar da mente é tão importante quanto cuidar do corpo, e que a verdadeira força está em reconhecer quando precisamos de apoio. Enquanto continuarmos a ignorar esta realidade, estaremos a condicionar não apenas a qualidade de vida de milhares de portugueses, mas o próprio futuro do país.

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