Há dois anos, quando o primeiro confinamento nos fechou em casa, algo mudou para sempre na forma como os portugueses encaram a saúde mental. As salas de espera dos psicólogos encheram-se de rostos que nunca antes tinham procurado ajuda. Pais exaustos, jovens perdidos, profissionais esgotados. A pandemia não trouxe apenas um vírus; trouxe uma epidemia de solidão que obrigou o país a encarar os seus fantasmas.
Nos consultórios, os terapeutas começaram a ouvir histórias que antes eram sussurradas. "Doutor, não aguento mais", tornou-se a frase mais repetida. As empresas, que durante décadas ignoraram o bem-estar emocional dos colaboradores, de repente perceberam que trabalhadores em burnout não produzem. E o Estado, sempre relutante em investir na saúde psicológica, viu os centros de saúde inundados com pedidos de ajuda.
O que se segue é uma investigação sobre como Portugal está a reinventar a sua relação com a saúde mental. Percorremos o país, desde as consultas online que chegam a aldeias remotas até aos programas pioneiros nas escolas. Falámos com especialistas, com doentes, com políticos. E descobrimos que, por detrás da tragédia, nasceu uma oportunidade única de mudança.
Nas urgências psiquiátricas do Hospital Júlio de Matos, em Lisboa, os números contam uma história dramática. Em 2021, as consultas de primeira vez aumentaram 47% face a 2019. "São pessoas que nunca imaginaram precisar de ajuda psiquiátrica", explica a Dra. Margarida Santos, coordenadora do serviço. "Vêm professores, engenheiros, empregadas de limpeza. A pandemia não escolhe classes sociais."
Mas a verdadeira revolução está a acontecer longe dos hospitais. Nas empresas, os programas de wellness deixaram de ser um extra para se tornarem essenciais. A SONAE implementou um sistema de apoio psicológico 24 horas para os seus 30.000 colaboradores. Os resultados? Uma redução de 32% no absentismo por causas psicológicas.
Nas escolas, o programa "Saúde Mental nas Aulas" está a formar professores para detetarem sinais de alerta. "As crianças são as grandes vítimas silenciosas da pandemia", alerta a psicóloga educacional Carla Mendes. "Estamos a ver casos de ansiedade em alunos do primeiro ciclo que antes eram raríssimos."
O digital tornou-se o grande aliado desta transformação. Plataformas como a Psious oferecem terapia através de realidade virtual, enquanto aplicações como a Calm conquistaram milhares de utilizadores portugueses. "A tecnologia quebrou barreiras geográficas e sociais", explica o fundador da startup Mindflow, Miguel Areias. "Hoje, um agricultor no Alentejo pode ter acesso aos melhores terapeutas de Lisboa."
Mas os desafios permanecem enormes. O Serviço Nacional de Saúde tem apenas 600 psicólogos para uma população de 10 milhões. Nas regiões do interior, o acesso a cuidados especializados é quase inexistente. E o estigma, embora menor, ainda persiste.
"Há vinte anos, um homem que dissesse que ia ao psicólogo era visto como fraco", recorde o sociólogo António Figueiredo. "Hoje, é visto como alguém que cuida de si. É uma mudança cultural profunda."
O que o futuro reserva? Especialistas acreditam que a pandemia acelerou em uma década a evolução da saúde mental em Portugal. As novas gerações, mais abertas a falar de emoções, estão a criar uma sociedade diferente. E o investimento privado em wellness não para de crescer.
Mas a verdadeira medida do sucesso será quando deixarmos de precisar de falar sobre como é importante falar de saúde mental. Quando cuidar da mente for tão natural como cuidar do corpo. Esse dia ainda está longe, mas pela primeira vez, podemos vê-lo no horizonte.
A revolução silenciosa da saúde mental em Portugal: como a pandemia nos obrigou a falar do que sempre calámos
