Há uma narrativa oficial sobre a educação em Portugal que se repete em relatórios internacionais e discursos políticos. Falamos de melhorias nos rankings PISA, do aumento da escolaridade obrigatória, da aposta na digitalização. Mas quando se desce ao terreno, quando se conversa com professores em salas de aula com paredes descascadas, com alunos que carregam mochilas mais pesadas de ansiedade do que de livros, surge uma história diferente. Uma história que os números não capturam.
Esta reportagem começou numa escola do interior alentejano, onde uma professora de 62 anos me mostrou o plano de aulas que preparou para o ano letivo. Metade das atividades dependem de materiais que a escola não tem. "Improvisamos", diz ela, com um sorriso cansado que conheço bem depois de visitar duas dezenas de estabelecimentos de ensino. O improviso tornou-se método. Enquanto o país celebra a chegada de mais tablets às escolas, há salas sem aquecimento no inverno e professores que gastam do próprio bolso em fotocópias.
A obsessão pelos rankings esconde uma realidade mais complexa. Num gabinete com vista para o Tejo, um responsável do Ministério da Educação explicou-me, com gráficos coloridos, como Portugal subiu três posições em ciências. Trinta quilómetros para norte, numa escola profissional, um jovem de 17 anos confessou que desistiu de física porque "não via sentido". Entre o dado estatístico e a experiência humana há um abismo que poucos se dão ao trabalho de atravessar. Os mesmos relatórios que nos colocam no topo da Europa em cobertura digital silenciam o facto de 23% dos alunos do básico não terem espaço adequado para estudar em casa, segundo um estudo recente da Universidade do Minho.
A formação de professores é outro capítulo desta história mal contada. Nos últimos cinco anos, os cursos de formação contínua multiplicaram-se como cogumelos após a chuva. Há diplomas para tudo: desde mindfulness em contexto escolar até programação para educadores de infância. Mas quando questionei 47 professores sobre a utilidade prática dessas formações, 39 responderam que eram "mais uma formalidade". A distância entre o que se ensina nas salas de formação e o que se vive nas salas de aula mede-se em anos-luz. Enquanto isso, os mestrados que realmente preparam para os desafios do século XXI têm listas de espera intermináveis.
O digital chegou às escolas portuguesas como um tsunami, arrastando consigo promessas de revolução pedagógica. Tablets, quadros interativos, plataformas de e-learning. Mas ninguém preparou os professores para o aftershock. Conheci uma educadora de infância de 54 anos que passa noites em claro a tentar perceber como funciona a nova plataforma de comunicação com os pais. "Sinto-me analfabeta", confessou, com os olhos marejados de lágrimas de frustração. A tecnologia que devia aproximar está a criar novas barreiras geracionais no corpo docente.
Há ainda a questão silenciosa da saúde mental nas escolas. Os gabinetes de psicologia existem no papel, mas na prática, a média é de um psicólogo para cada 1.200 alunos. Conversei com adolescentes que carregam diagnósticos de ansiedade como se fossem mochilas, com pais que não sabem a quem recorrer, com diretores de agrupamento que fazem de tripas coração para arranjar uma consulta externa para um aluno em crise. Enquanto debatemos se o exame de matemática deve ter 90 ou 120 minutos, perdemos de vista o essencial: estamos a educar crianças ou a produzir resultados?
O caso mais paradigmático que encontrei foi o de uma escola em Oliveira do Hospital que transformou um antigo barracão num espaço de aprendizagem ao ar livre. Sem verba para projetos inovadores, os professores juntaram-se aos pais e construíram com as próprias mãos. Os resultados apareceram nos boletins, sim, mas também nos olhos das crianças que correm para a escola às segundas-feiras. Esta micro-revolução aconteceu à margem dos planos nacionais, quase por acidente. Faz-me pensar quantas outras soluções estão a germinar no terreno, ignoradas pelos gabinetes de Lisboa.
No final desta investigação, que me levou de norte a sul do país, uma conclusão impõe-se: estamos perante um sistema educacional com esquizofrenia aguda. De um lado, a narrativa oficial de sucesso, sustentada por indicadores internacionais. Do outro, a realidade quotidiana de quem vive a educação por dentro. A verdade, como sempre, está algures no meio. Mas para a encontrarmos, teremos de fazer o que poucos se atrevem: ouvir mais os que estão nas trincheiras e menos os que estão nos gabinetes com vista para o rio.
O futuro da educação portuguesa não se decide em relatórios da OCDE, mas nas salas de aula onde, neste preciso momento, um professor tenta acender uma fagulha de curiosidade numa criança. Tudo o resto é ruído.
O lado oculto da educação em Portugal: o que os dados não contam