Enquanto o sol português continua a brilhar com intensidade quase todo o ano, a energia solar no país parece viver à sombra do seu próprio potencial. Portugal, com mais de 300 dias de sol anuais, deveria ser uma potência solar incontestável. No entanto, a realidade apresenta um cenário bem mais complexo e paradoxal.
Os números contam uma história de oportunidades perdidas. Apesar dos avanços recentes, Portugal continua a importar combustíveis fósseis quando poderia estar a exportar eletricidade solar para a Europa. A burocracia, os entraves legais e a falta de uma estratégia clara mantêm o país refém de um sistema que privilegia o convencional em detrimento do revolucionário.
Nos últimos dois anos, assistimos a um boom de projetos solares, mas a maioria são megaprojetos de grandes empresas. O cidadão comum, o pequeno comerciante, o agricultor - esses continuam à espera de condições que lhes permitam participar ativamente nesta transição energética. As comunidades energéticas, prometidas há anos, ainda são uma miragem para a maioria dos portugueses.
O setor agrícola representa um dos maiores paradoxos. Enquanto os agricultores lutam com custos energéticos crescentes, milhares de hectares de terrenos poderiam estar a produzir energia enquanto mantêm a atividade agrícola. A agrovoltaica - a combinação de produção agrícola com geração solar - continua praticamente inexistente em Portugal, apesar dos sucessos comprovados noutros países mediterrânicos.
A crise energética desencadeada pela guerra na Ucrânia deveria ter sido o impulso definitivo para a energia solar. Em vez disso, tornou-se mais um capítulo na longa história de dependência externa. Os preços da eletricidade atingiram níveis históricos, enquanto o sol continuava gratuito e abundante sobre o território nacional.
Os leilões solares têm sido palco de batalhas entre gigantes energéticos, mas faltam mecanismos que permitam às pequenas e médias empresas, às autarquias e às comunidades participarem ativamente. O modelo atual parece desenhado para manter o poder concentrado em poucas mãos, em vez de democratizar o acesso à energia limpa.
A questão do armazenamento é outro calcanhar de Aquiles. Produzir energia solar é relativamente simples; armazená-la para quando o sol não brilha continua a ser o grande desafio. Enquanto países como a Alemanha investem massivamente em soluções de baterias e hidrogénio verde, Portugal parece hesitar perante o custo inicial destas tecnologias.
Os edifícios públicos representam outra oportunidade desperdiçada. Escolas, hospitais, centros de saúde e outros equipamentos do Estado poderiam ser autossuficientes energeticamente, reduzindo drasticamente as contas públicas de eletricidade. Em vez disso, continuam a depender da rede convencional, pagando preços elevados por energia que poderiam produzir gratuitamente.
O litoral algarvio e alentejano, com a sua radiação solar excecional, deveria ser o equivalente português ao Silicon Valley da energia solar. No entanto, os projetos avançam a passo de caracol, entravados por licenciamentos intermináveis e por conflitos entre diferentes interesses territoriais.
A indústria nacional de componentes solares praticamente não existe. Importamos painéis da China, inversores da Alemanha e estruturas de vários países, quando poderíamos estar a desenvolver uma cadeia de valor local que criasse empregos qualificados e reduzisse a dependência externa.
Os fundos europeus do Plano de Recuperação e Resiliência representam uma oportunidade histórica para mudar este panorama. No entanto, o risco é que se repitam os erros do passado: projetos faraónicos que beneficiam principalmente grandes grupos, em detrimento de uma verdadeira democratização energética.
O consumidor final continua refém de um sistema complexo e pouco transparente. As tarifas bihorárias, os diferentes comercializadores, os impostos e taxas criam uma confusão que desincentiva muitos portugueses de investir em autoconsumo.
A formação profissional é outra lacuna crítica. Não existem técnicos suficientes para instalar e manter sistemas solares, nem cursos profissionalizantes que preparem os jovens para as oportunidades deste setor em crescimento.
As zonas rurais e o interior do país, muitas vezes esquecidas nas políticas de desenvolvimento, poderiam ser as grandes beneficiárias de uma verdadeira revolução solar. A descentralização da produção energética poderia fixar população e criar novas atividades económicas em regiões em declínio demográfico.
O futuro da energia solar em Portugal não depende apenas de tecnologia ou de investimento. Depende sobretudo de vontade política, de visão estratégica e da coragem para romper com modelos ultrapassados. O sol português está pronto para brilhar mais forte - resta saber se o país está preparado para o aproveitar.
O paradoxo solar português: como o país do sol ainda não brilha na energia renovável
