O paradoxo solar: Portugal brilha na energia renovável enquanto famílias enfrentam contas astronômicas

O paradoxo solar: Portugal brilha na energia renovável enquanto famílias enfrentam contas astronômicas
Enquanto o governo celebra os números recordes de produção solar, milhares de portugueses continuam a debater-se com faturas de energia que parecem saídas de um romance de ficção científica. O sol português tornou-se numa espécie de ouro moderno, mas quem está realmente a beneficiar desta revolução energética?

Nos últimos dois anos, Portugal bateu sucessivos recordes na produção de energia solar. De acordo com dados da REN, em alguns dias de verão, mais de 30% da eletricidade consumida no país vem diretamente do sol. Os números são impressionantes: capacidade instalada triplicou desde 2020, com projetos solares a surgir como cogumelos após a chuva de outono. Mas esta aparente bonança esconde uma realidade mais complexa.

O investigador Miguel Carvalho, do Instituto de Energia e Ambiente, explica: "Temos um paradoxo interessante. Por um lado, temos produtores a receber preços recordes pela energia que injetam na rede. Por outro, os consumidores domésticos veem as suas faturas aumentar mês após mês. Algo não está a funcionar como deveria no mercado."

A história da Maria dos Santos, reformada de 72 anos de Setúbal, ilustra bem esta contradição. "Instalei painéis solares no telhado há três anos. Na altura, disseram-me que ia poupar bastante na eletricidade. A verdade é que continuo a pagar quase o mesmo, porque os custos de manutenção e as taxas de acesso à rede não param de subir."

O setor empresarial, no entanto, parece estar a nadar em lucros. As grandes empresas de energia reportaram lucros históricos no último trimestre, enquanto os projetos de grande escala multiplicam-se por todo o Alentejo e Algarve. "É como se tivéssemos criado dois sistemas paralelos: um para os grandes players e outro para os cidadãos comuns", comenta Sofia Mendes, economista especializada em energia.

A transição energética tornou-se num negócio bilionário. Só no primeiro semestre deste ano, foram investidos mais de 800 milhões de euros em novos parques solares em Portugal. Os fundos de investimento internacionais disputam os melhores projetos, enquanto as comunidades locais questionam os benefícios reais que lhes chegam.

Em Mértola, o projeto Solaris prometia criar dezenas de empregos e reduzir as contas de energia da população. Dois anos depois, a realidade é bem diferente. "Os empregos criados foram temporários, durante a construção. Agora temos três pessoas a trabalhar lá, todas de fora da região", conta António Silva, presidente da junta de freguesia.

O problema, segundo os especialistas, está na forma como o mercado foi desenhado. "Temos um sistema que privilegia a produção em grande escala, mas que não consegue traduzir esses ganhos de eficiência para o consumidor final", explica a professora Helena Costa, da Faculdade de Economia do Porto.

Enquanto isso, as barreiras burocráticas continuam a dificultar a vida aos pequenos produtores. João Pereira, agricultor no Alentejo, espera há mais de um ano pela licença para instalar painéis na sua propriedade. "É uma papelada interminável. Enquanto isso, as grandes empresas conseguem licenças em meses."

A questão das interligações também preocupa os especialistas. Portugal produz cada vez mais energia solar, mas a capacidade de a transportar para onde é necessária continua limitada. "Há dias em que temos de desligar parques solares porque a rede não consegue absorver toda a produção", revela um técnico da REN que prefere manter o anonimato.

Os ambientalistas alertam para outro problema: o impacto ecológico dos grandes parques solares. "Estamos a substituir ecossistemas únicos por oceanos de painéis. É preciso encontrar um equilíbrio entre a produção de energia limpa e a preservação da biodiversidade", defende Margarida Santos, da associação Zero.

O governo promete medidas para corrigir estas distorções. O novo pacote legislativo, a ser apresentado no próximo mês, deverá incluir incentivos para a produção descentralizada e simplificação dos processos para pequenos produtores. Mas os críticos duvidam que seja suficiente.

"Precisamos de uma revolução na forma como pensamos a energia. Não basta produzir mais solar, é preciso garantir que os benefícios chegam a todos", defende o deputado Rui Marques, relator da comissão parlamentar de energia.

Enquanto os debates continuam nas salas do poder, nas cozinhas portuguesas a realidade é mais dura. Ana Lopes, mãe de dois filhos no Porto, resume o sentimento de muitos: "Ouvimos falar tanto da revolução solar, mas na prática continuamos a contar os euros para pagar a luz. Algo tem de mudar."

O futuro da energia solar em Portugal dependerá da capacidade de resolver este paradoxo: como fazer com que a abundância de sol se traduza em benefícios reais para todos os portugueses, e não apenas para alguns bolsos privilegiados.

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