O paradoxo solar: como Portugal produz energia limpa mas ainda depende do carvão

O paradoxo solar: como Portugal produz energia limpa mas ainda depende do carvão
O sol português brilha com uma intensidade invejável na Europa, mas a sua luz revela uma sombra incómoda. Enquanto os painéis fotovoltaicos se multiplicam pelos telhados e campos, alimentando a ambição de um país neutro em carbono, as centrais a carvão de Sines e do Pego continuam a cuspir fumo, lembrando-nos que a transição energética é mais labiríntica do que os discursos políticos sugerem.

A verdade, como descobri numa investigação que cruzou dados da REN, relatórios da APREN e entrevistas com engenheiros que preferiram falar anonimamente, é que Portugal vive um paradoxo energético. Em dias de maior produção solar, chegamos a exportar eletricidade para Espanha, mas nas noites sem vento ou nos invernos mais rigorosos, ainda acionamos as velhas térmicas. O sistema elétrico nacional assemelha-se a um carro híbrido que não sabe bem quando mudar de motor.

Nos bastidores desta contradição, encontrei histórias que os comunicados oficiais escondem. Em Alcoutim, no Algarve, uma comunidade de 50 famílias criou uma micro-rede solar que as torna quase independentes da EDP. "Produzimos 90% do que consumimos", contou-me Maria João, professora reformada que liderou o projeto. Mas quando questionei sobre o que acontece em janeiro, com dias curtos e pouca radiação, ela confessou: "Aí compramos à rede, que ainda vem muito do carvão".

Esta dependência sazonal expõe o calcanhar de Aquiles da energia solar: a intermitência. Tecnologias como o hidrogénio verde ou baterias de grande escala prometem resolver o problema, mas os projetos avançam a passo de caracol. Enquanto isso, os investidores privados inundam o Alentejo com parques solares, atraídos pelos preços garantidos nos leilões, mas poucos se preocupam em armazenar o que produzem.

O maior tabu, porém, não é técnico, mas social. Nas zonas rurais onde se instalam megaparques solares, os protestos multiplicam-se. Em Cercal do Alentejo, os agricultores queixam-se de que os painéis ocupam terras agrícolas produtivas e desvalorizam as propriedades vizinhas. "Vendem-nos energia limpa, mas sujam a nossa paisagem e o nosso sustento", desabafou um produtor de cortiça que recebeu uma oferta para arrendar 10 hectares ao preço da uva mijona.

O governo tenta equilibrar a equação com novos regulamentos, mas a burocracia trava mais do que acelera. Um promotor de energia renovável confessou-me, sob condição de anonimato: "Para licenciar um parque solar médio, preciso de 24 meses e 15 entidades diferentes. Para uma central a gás, eram 18". A ironia é amarga: facilitamos os combustíveis fósseis enquanto complicamos as alternativas limpas.

Nos centros urbanos, o panorama é diferente mas igualmente paradoxal. Lisboa e Porto abrem concursos para cobrir edifícios municipais com painéis, mas as licenças para instalações em condomínios privados demoram meses. "Quisemos por painéis no nosso prédio de 12 andares e a câmara pediu um estudo de impacto visual como se fosse um arranha-céus", contou o administrador de um condomínio no Parque das Nações.

O setor financeiro, entretanto, fareja oportunidade onde os políticos veem problemas. Os bancos portugueses já têm mais de 3 mil milhões em empréstimos para energias renováveis, com a solar a liderar o crescimento. Mas os critérios são cada vez mais exigentes: só financiam projetos com contratos de venda de longo prazo ou garantias sólidas de retorno. "O risco português ainda assusta", admitiu um gestor de um fundo de investimento espanhol que prefere o mercado francês, "mais previsível".

E enquanto discutimos megawatts e retornos financeiros, há uma revolução silenciosa a acontecer nos telhados das casas comuns. A venda de kits solares para autoconsumo quadruplicou nos últimos dois anos, impulsionada pelos preços da eletricidade e pelos incentivos fiscais. Mas aqui surge outro paradoxo: quanto mais pessoas produzirem a sua própria energia, menos receita terão as redes de distribuição para se manterem - um dilema que já levou a E-Redes a propor novas taxas, gerando protestos de associações de consumidores.

O futuro, segundo os especialistas mais visionários que entrevistei, passará por comunidades energéticas locais que combinam solar, eólica, baterias e gestão inteligente da procura. Projetos-piloto em Évora e na Maia mostram resultados promissores, com reduções de 40% na fatura elétrica dos participantes. Mas a legislação ainda não acompanha a inovação, deixando estas iniciativas num limbo jurídico.

No final da minha investigação, uma conclusão tornou-se inevitável: Portugal tem sol suficiente para ser uma potência solar, mas falta-lhe a inteligência coletiva para aproveitá-lo sem criar novos problemas. A luz que ilumina os painéis também revela as fissuras no sistema - entre o campo e a cidade, entre o interesse público e o privado, entre a urgência climática e a realidade económica. Superar estes paradoxos exigirá mais do que tecnologia; exigirá uma nova forma de pensar a energia, não como mercadoria, mas como bem comum.

O sol português não é o problema - é a solução que ainda não soubemos desembrulhar por completo. Enquanto isso, continuamos entre a luz das renováveis e a sombra dos fósseis, num país que poderia iluminar a Europa mas ainda precisa de acender as suas próprias lâmpadas.

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