O paradoxo solar: como a energia mais barata da história enfrenta barreiras que ameaçam a transição energética em Portugal

O paradoxo solar: como a energia mais barata da história enfrenta barreiras que ameaçam a transição energética em Portugal
Num país onde o sol brilha em média 300 dias por ano, a energia solar deveria ser uma aposta óbvia. Mas a realidade que emerge das últimas semanas revela um cenário mais complexo, onde o potencial ilimitado se confronta com obstáculos burocráticos, sociais e técnicos que poucos antecipavam. Enquanto o governo anuncia novos leilões solares, no terreno as histórias multiplicam-se de projetos parados, comunidades divididas e oportunidades perdidas.

A primeira contradição surge nos números: Portugal bate recordes de produção solar quase mensalmente, com picos que já cobrem mais de 30% da procura nacional. Os preços nos leilões descem a pique, tornando esta a fonte de energia mais barata da história do país. No entanto, quando se analisa a capacidade instalada face ao potencial, Portugal continua significativamente atrás de países com muito menos sol, como a Alemanha ou a Bélgica. O que explica este desfasamento entre potencial e realidade?

A resposta pode estar nos municípios. Uma investigação recente revela que mais de 40% dos pedidos de licenciamento para centrais solares estão parados em câmaras municipais, algumas há mais de dois anos. Os motivos variam desde falta de técnicos especializados até preocupações legítimas sobre o impacto paisagístico. Em Trás-os-Montes, uma comunidade dividiu-se quando uma multinacional propôs ocupar 200 hectares com painéis solares. "É desenvolvimento ou é destruição?", pergunta-nos um agricultor local, cujas terras familiares estão no centro da polémica.

Enquanto os grandes projetos enfrentam resistência, surge uma revolução silenciosa nos telhados portugueses. O autoconsumo cresce a dois dígitos anuais, com famílias e pequenas empresas a descobrirem que podem reduzir a fatura energética em mais de 60%. Mas aqui também há paradoxos: o excesso de produção muitas vezes não tem onde ser armazenado ou vendido, e a burocracia para ligar à rede ainda assusta muitos potenciais investidores.

O armazenamento emerge como o próximo grande desafio. As baterias de grande escala ainda são caras e as soluções inovadoras, como o hidrogénio verde produzido com excedentes solares, estão numa fase embrionária. "Temos sol suficiente para alimentar o país duas vezes, mas não temos onde guardar a energia para quando o sol se põe", explica uma engenheira especializada em redes inteligentes.

Nos bastidores do poder, a batalha é outra. Os leilões solares atraem gigantes internacionais dispostos a investir milhões, mas os critérios de avaliação são alvo de críticas. Alguns especialistas questionam se o foco no preço mais baixo está a sacrificar outros fatores importantes, como a criação de emprego local ou a integração com atividades económicas existentes.

A transição justa torna-se assim o conceito mais urgente. Como garantir que a revolução solar beneficia todas as camadas da sociedade? As cooperativas energéticas multiplicam-se, permitindo que mesmo quem não tem telhado próprio participe e beneficie. Em Lisboa, um bairro social tornou-se pioneiro ao instalar painéis que alimentam áreas comuns e reduzem as despesas dos residentes mais vulneráveis.

O futuro próximo trará novos desafios. A rede elétrica nacional, desenhada para grandes centrais a carvão e gás, precisa de uma transformação profunda para acomodar milhares de pequenas unidades de produção solar. Os investimentos necessários são colossais, e o timing é apertado face às metas europeias de descarbonização.

Mas há luz no fim do túnel. Startups portuguesas desenvolvem tecnologias inovadoras, desde painéis solares transparentes que podem substituir vidros em edifícios até sistemas flutuantes para barragens que poupam terreno. A formação profissional adapta-se, criando novos empregos que não existiam há cinco anos.

O paradoxo solar português resume-se assim: temos a tecnologia, temos o recurso natural e temos a vontade política. O que falta é harmonizar estes três elementos, ultrapassando barreiras que são mais humanas e organizacionais do que técnicas. A transição energética não será feita apenas com painéis e cabos, mas com diálogo, planeamento inteligente e uma visão que vá além do preço por megawatt-hora.

Nas próximas semanas, decisões cruciais serão tomadas. Novos leilões, reformas no licenciamento, investimentos em redes inteligentes. O sol continuará a brilhar, independentemente das nossas escolhas. A questão é se saberemos aproveitá-lo de forma inteligente, justa e sustentável, ou se continuaremos a debater-nos com paradoxos enquanto o relógio climático não para.

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