O paradoxo energético português: sol a brilhar mas painéis a dormir

O paradoxo energético português: sol a brilhar mas painéis a dormir
Enquanto Portugal bate recordes de produção solar, milhares de painéis fotovoltaicos instalados nos últimos anos permanecem desconectados da rede. Uma investigação revela que o excesso de burocracia, a falta de capacidade das redes de distribuição e os entraves técnicos estão a travar a revolução solar prometida.

Nos armazéns de pelo menos três distribuidoras nacionais, acumulam-se centenas de pedidos de ligação à rede que aguardam há mais de oito meses por uma vistoria. Os técnicos responsáveis pelas ligações confessam, sob anonimato, que as equipas são insuficientes para a procura explosiva dos últimos dois anos.

O fenómeno é particularmente grave no Alentejo e Algarve, onde a radiação solar atinge os valores mais elevados da Europa. Agricultores que investiram dezenas de milhares de euros em sistemas de autoconsumo veem os seus painéis a acumular pó enquanto esperam pela tão desejada ligação.

A E-Redes, principal operador da rede de distribuição, reconhece os atrasos mas atribui-os à "procura sem precedentes" e à complexidade dos processos de licenciamento. Fontes internas, no entanto, admitem que a empresa subestimou dramaticamente a adesão aos incentivos governamentais.

O governo promete simplificar os processos até final do ano, mas especialistas duvidam que as medidas sejam suficientes. "Estamos a desperdiçar o nosso maior recurso natural", alerta Miguel Cabrita, professor de Energias Renováveis na Universidade Nova de Lisboa. "Cada dia de atraso significa milhares de euros em energia limpa perdida."

Paralelamente, cresce o mercado negro de "ligações expresso", onde intermediários cobram até 2000 euros para acelerar ilegalmente os processos junto das distribuidoras. A ERSE já investiga várias denúncias de corrupção no sector.

Os grandes parques solares comerciais, com ligações prioritárias, avançam a todo o vapor enquanto os pequprodutores ficam para trás. Esta disparidade está a criar duas velocidades na transição energética portuguesa, aprofundando assimetrias regionais e sociais.

Os municípios mais afectados começam a organizar-se. Em Beja, a câmara municipal criou uma task force para pressionar as distribuidoras e ajudar os cidadãos nos processos burocráticos. "Não podemos permitir que a papelada nos impeça de aproveitar o sol", afirma o presidente da autarquia.

A situação levou ao aparecimento de soluções tecnológicas improvisadas. Alguns produtores estão a usar baterias de grande capacidade para armazenar a energia não injectada na rede, enquanto outros vendem informalmente o excedente a vizinhos através de linhas directas.

O paradoxo é gritante: Portugal tem das melhores condições solares da Europa, metas ambiciosas de descarbonização e cidadãos dispostos a investir, mas esbarra na incapacidade do sistema para absorver esta revolução energética de baixo para cima.

Especialistas internacionais que estudam o caso português alertam para o risco de este se tornar um exemplo de como não gerir uma transição energética. "A lição é clara", afirma Dragana Milovanovic, consultora energética sénior. "De nada serve ter incentivos financeiros se o sistema não tiver capacidade para responder."

Enquanto isso, nos telhados do país, milhares de painéis continuam mudos, testemunhas silenciosas de uma oportunidade desperdiçada. O sol nasce todos os dias, mas a burocracia parece não conhecer horários.

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