O paradoxo energético português: como o sol que nos aquece pode queimar a competitividade

O paradoxo energético português: como o sol que nos aquece pode queimar a competitividade
No verão de 2023, enquanto os termómetros batiam recordes históricos, Portugal enfrentava um paradoxo energético digno de Kafka. As centrais solares produziam eletricidade em excesso, obrigando a cortes na produção que custaram milhões aos operadores. Ao mesmo tempo, os consumidores pagavam facturas de energia que continuavam a subir. Esta contradição expõe as fragilidades de uma transição energética feita à pressa, sem as infraestruturas necessárias para aproveitar o potencial que temos.

A obsessão pelas metas de descarbonização criou uma bolha de investimento em projetos solares que não encontraram correspondência no desenvolvimento das redes de transporte e distribuição. O resultado é um sistema que produz quando não precisa e falha quando mais se necessita. Os dados da REN mostram que, em julho passado, Portugal desperdiçou o equivalente ao consumo mensal de 150 mil famílias porque as linhas não tinham capacidade para escoar toda a produção.

Enquanto isso, a indústria portuguesa vê-se obrigada a competir com países onde a energia é significativamente mais barata. O custo marginal da produção solar é próximo de zero, mas os consumidores finais não sentem essa vantagem. As tarifas de acesso às redes, os encargos gerais do sistema e os impostos transformam o que deveria ser uma benção numa maldição para a competitividade das empresas.

O problema não está na aposta nas renováveis - essa é inevitável e desejável - mas na forma como estamos a gerir a transição. Faltam investimentos em armazenamento, em redes inteligentes e em mecanismos de flexibilidade que permitam aproveitar o potencial solar sem comprometer a segurança do abastecimento. Os leilões de capacidade realizados nos últimos anos focaram-se quase exclusivamente na produção, ignorando que a energia só tem valor se chegar aos consumidores quando estes precisam.

A situação é particularmente grave no Alentejo, onde a concentração de parques solares criou autênticos "desertos energéticos". As linhas de muito alta tensão que ligam esta região aos centros de consumo estão sobrecarregadas, obrigando a cortes frequentes na produção. Os investidores que apostaram milhões nestes projetos veem-se agora impossibilitados de escoar a energia que produzem, enquanto as comunidades locais pouco beneficiam desta riqueza que lhes passa ao lado.

O armazenamento surge como a peça que falta neste puzzle energético. As baterias em grande escala ainda são caras e as centrais de bombagem hidroelétrica existentes não chegam para equilibrar um sistema cada vez mais dependente do sol. Portugal precisa urgentemente de uma estratégia para o armazenamento que incentive o investimento privado e crie as condições para uma integração eficiente das renováveis.

A digitalização das redes é outra frente onde estamos a falhar. As smart grids poderiam permitir uma gestão mais eficiente dos fluxos de energia, ajustando a produção e o consumo em tempo real. No entanto, a modernização das redes avança a passo de caracol, entravada por regulamentos obsoletos e por uma cultura conservadora no setor.

O consumidor final continua a ser o grande esquecido nesta equação. Os mecanismos de partilha de energia entre vizinhos ou as comunidades energéticas esbarram em barreiras burocráticas que tornam quase impossível a sua implementação. Enquanto isso, as grandes utilities mantêm o controlo do sistema, perpetuando um modelo centralizado que já não faz sentido num mundo de produção descentralizada.

A solução passa por uma abordagem integrada que combine investimento em infraestruturas, reforma regulatória e empoderamento dos consumidores. Precisamos de planear o sistema energético como um todo, não como um conjunto de peças desconexas. Isso implica repensar o modelo de mercado, os mecanismos de remuneração e as prioridades de investimento.

O tempo urge. Cada dia que passa sem resolver estas contradições é um dia em que perdemos competitividade e adiamos uma transição energética que devia ser uma oportunidade, não um fardo. O sol português pode ser a nossa maior riqueza ou a nossa maior maldição - a diferença está nas escolhas que fizermos hoje.

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  • Energia Solar