Há uma revolução silenciosa a acontecer nas estradas portuguesas, e não vem dos motores a rugir ou dos escapes a fumegar. Vem do quase impercetível zumbido dos veículos elétricos que, aos poucos, estão a reescrever o manual das seguradoras. Enquanto os portugueses se rendem aos benefícios fiscais e à promessa de um futuro mais limpo, há uma pergunta que ecoa nas salas de reuniões das maiores companhias: como segurar o que ainda não se compreende totalmente?
Os números não mentem. Em 2023, as vendas de veículos elétricos em Portugal aumentaram 43%, segundo dados da ACAP. Mas por trás desta estatística otimista esconde-se uma realidade complexa. As baterias, o coração destes veículos, representam até 40% do seu valor total. Um pequeno acidente que danifique o pacote de baterias pode transformar-se num sinistro total, deixando tanto o condutor como a seguradora a contas com uma conta astronómica. E aqui reside o primeiro paradoxo: estamos a substituir problemas mecânicos conhecidos por incógnitas tecnológicas.
Nas oficinas especializadas, os técnicos contam histórias que parecem saídas de um manual de ficção científica. "Já tivemos um Tesla Model 3 que, após uma colisão lateral aparentemente menor, entrou em modo de segurança e recusou-se a mover-se", confidencia um mecânico de Lisboa que pede anonimato. "A seguradora acabou por declarar perda total porque o custo de diagnóstico e reparação da bateria ultrapassava o valor do carro." Estas situações estão a forçar as seguradoras a desenvolver novos protocolos, muitas vezes aprendendo com os erros à medida que surgem.
Mas o desafio vai além da mecânica. Os dados recolhidos pelos veículos elétricos modernos estão a criar um novo campo de batalha entre privacidade e precificação. Cada carregamento, cada trajeto, cada estilo de condução é meticulosamente registado. As seguradoras, de olho nestes dados, começam a oferecer prémios mais baixos para condutores que demonstrem hábitos de condução eficientes. Parece justo, até nos lembrarmos que estamos a entregar um retrato detalhado das nossas vidas em troca de poupar alguns euros na apólice.
A verdade inconveniente que ninguém quer discutir em voz alta é a obsolescência programada. As baterias de iões de lítio têm uma vida útil estimada entre 8 a 10 anos, dependendo do uso. O que acontece quando a bateria do teu carro elétrico de 2030 começar a degradar-se significativamente? As seguradoras ainda não têm uma resposta clara para esta questão, mas os especialistas anteveem uma vaga de sinistros relacionados com a degradação das baterias que poderá abalar o mercado nos próximos anos.
Enquanto isso, nas estradas secundárias do Alentejo ou nas íngremes subidas da Serra da Estrela, os condutores de elétricos enfrentam outro tipo de desafio: a ansiedade de autonomia. Esta preocupação constante com a próxima estação de carregamento está a alterar os padrões de condução, muitas vezes levando a decisões mais cautelosas. Paradoxalmente, isto poderia traduzir-se em menos acidentes, um fator que as seguradoras ainda não incorporaram totalmente nos seus modelos de risco.
O futuro, contudo, reserva mais surpresas. A chegada iminente dos veículos autónomos promete revolucionar novamente o setor. Se o carro conduz sozinho, quem é responsável em caso de acidente? O proprietário? O fabricante do software? A empresa que desenvolveu os sensores? As seguradoras estão a trabalhar com advogados e especialistas em ética para tentar antecipar estes cenários, mas a legislação continua vários passos atrás da tecnologia.
Nas assembleias gerais das seguradoras, os acionistas questionam se o modelo tradicional de seguros automóvel sobreviverá a esta transição. Algumas empresas estão já a testar modelos de subscrição por quilómetro percorrido ou por tempo de utilização, abandonando gradualmente o conceito de prémio anual fixo. Outras investem fortunas em parcerias com fabricantes de automóveis para ter acesso privilegiado aos dados dos veículos.
Para o condutor comum, esta revolução traduz-se numa necessidade de se informar como nunca antes. Ler as letras pequenas da apólice deixou de ser suficiente. Agora é preciso compreender como a seguradora avalia o risco da bateria, que dados recolhe do veículo, e quais as exclusões específicas para tecnologia elétrica. Os peritos recomendam negociar cláusulas específicas para a bateria e questionar explicitamente sobre a política da seguradora em caso de degradação acelerada.
O que começou como uma simples mudança de combustível transformou-se numa redefinição completa da relação entre condutores, veículos e seguradoras. Nas estradas do futuro, o som do motor será diferente, mas o silêncio mais ensurdecedor virá das salas onde se decidem as regras deste novo jogo. E enquanto as seguradoras tentam adaptar-se, os portugueses que optaram pelo elétrico conduzem não apenas para um destino, mas para um território inexplorado do seguro automóvel.
O segredo que as seguradoras não querem que saibas: como o teu carro elétrico está a mudar as regras do jogo