O som que nos une: como a audição molda as nossas relações e bem-estar

O som que nos une: como a audição molda as nossas relações e bem-estar
Num café de Lisboa, um homem de meia-idade observa o movimento da rua enquanto segura o seu copo. Os seus olhos seguem os transeuntes, mas há algo de diferente na forma como se relaciona com o ambiente. Usa discretamente um aparelho auditivo que lhe devolveu não apenas os sons, mas a capacidade de se conectar verdadeiramente com os outros. Esta é uma história que se repete por todo o país, embora muitas vezes passe despercebida.

A perda auditiva afeta cerca de 30% da população portuguesa acima dos 65 anos, segundo dados da Direção-Geral da Saúde. No entanto, o estigma associado aos aparelhos auditivos continua a ser uma barreira significativa. "As pessoas têm medo de parecer velhas ou deficientes", explica Maria Silva, audiologista com 15 anos de experiência. "O que não percebem é que a verdadeira deficiência está em isolarem-se do mundo dos sons."

A tecnologia moderna transformou radicalmente estes dispositivos. Os aparelhos atuais são praticamente invisíveis, alguns do tamanho de uma ervilha, e oferecem funcionalidades que vão desde a conexão Bluetooth até à capacidade de se adaptarem automaticamente a diferentes ambientes sonoros. "É como ter um assistente pessoal para os ouvidos", brinca João Martins, utilizador de 42 anos que perdeu parte da audição devido à exposição prolongada a ruído no local de trabalho.

Mas a questão vai muito além da tecnologia. A audição está intimamente ligada à nossa saúde cognitiva. Estudos recentes demonstram que a perda auditiva não tratada pode acelerar o declínio cognitivo em até 30-40%. O cérebro, privado de estímulos sonoros, começa a atrofiar-se, tal como um músculo que não é exercitado. "Cada conversa que não ouvimos é uma oportunidade perdida para manter o nosso cérebro ativo", alerta a neurologista Catarina Mendes.

O impacto social é igualmente profundo. Imagine estar numa festa de família e conseguir acompanhar apenas metade das conversas. Ou num jantar com amigos, ter de pedir constantemente que repitam o que disseram. Estas situações levam muitas pessoas a retirarem-se gradualmente da vida social. "Comecei a recusar convites porque me sentia excluída", confessa Ana Lopes, de 58 anos. "Só quando coloquei o aparelho percebi o quanto me tinha fechado numa bolha."

A prevenção começa cedo. A exposição a ruídos intensos em concertos, através de auscultadores ou em certas profissões está a criar uma geração com problemas auditivos cada vez mais precoces. "Vejo jovens de 25 anos com audição de pessoas de 60", preocupa-se o médico otorrinolaringologista Rui Costa. A solução? Proteção auditiva adequada e consciencialização desde a escola.

O processo de adaptação a um aparelho auditivo não é instantâneo. Requer paciência e acompanhamento profissional. "O cérebro precisa de tempo para se readaptar a sons que há muito não ouvia", explica Maria Silva. "Nos primeiros dias, até o barulho do frigorífico pode parecer ensurdecedor." Mas a recompensa vale o esforço: recuperar o sussurro das ondas na praia, o riso das crianças, a música que nos marcou na juventude.

Em Portugal, o acesso a estes dispositivos melhorou significativamente com o apoio do Serviço Nacional de Saúde, embora as listas de espera ainda sejam um desafio. O importante é não adiar a procura de ajuda. "Quanto mais tempo se espera, mais difícil é a adaptação", alertam os especialistas.

No final, trata-se de qualidade de vida. Ouvir não é apenas percecionar sons - é participar ativamente no mundo, manter relações significativas e preservar a nossa saúde mental. Como diz o provérbio, "quem ouve sempre alcança". No caso da audição, esta sabedoria popular nunca fez tanto sentido.

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