Num café de Lisboa, enquanto o ruído da máquina de café compete com as conversas animadas, Maria, 68 anos, inclina-se para a frente. 'Repito três vezes o que me dizem', confessa, enquanto ajusta discretamente o aparelho auditivo atrás da orelha. Esta cena, que se repete em milhares de estabelecimentos por todo o país, é apenas a ponta visível de um icebergue silencioso que afeta cerca de 30% dos portugueses com mais de 65 anos. Mas será que estamos realmente a ouvir o que se passa com os nossos ouvidos?
A investigação começa nos números frios: segundo dados da Direção-Geral da Saúde, mais de 400 mil portugueses sofrem de perda auditiva significativa. No entanto, menos de metade utiliza soluções auditivas. Porquê? A resposta não está apenas nos consultórios médicos, mas nas salas de espera, nas farmácias, e sobretudo, no estigma social que ainda persiste. 'As pessoas associam os aparelhos à velhice', explica o Dr. António Silva, otorrinolaringologista com 25 anos de experiência. 'Mas hoje em dia, os jovens que ouvem música demasiado alta nos auriculares estão a criar uma geração de futuros utilizadores'.
Vamos então às ruas. No Porto, encontramos Carlos, 42 anos, que trabalha na construção civil. 'O barulho das máquinas é constante', diz, enquanto mostra um protetor auditivo básico. 'Sei que devia usar equipamento melhor, mas custa'. Este é o paradoxo português: num país onde o sol e o mar são cartões de visita, esquecemo-nos que o ruído profissional é uma das principais causas de problemas auditivos. As estatísticas mostram que 15% dos trabalhadores portugueses estão expostos a níveis sonoros perigosos.
Mas a história não acaba aqui. Nas escolas, um estudo recente da Universidade de Coimbra revelou que 20% das crianças entre os 6 e os 10 anos já apresentam sinais precoces de dano auditivo. A culpa? Tablets, telemóveis e a cultura do volume máximo. 'Os pais dão dispositivos eletrónicos às crianças sem pensar nos decibéis', alerta a professora Sofia Mendes, que implementou um programa de consciencialização auditiva na sua escola.
E o que diz a tecnologia? Visitamos um centro auditivo em Braga onde nos mostram aparelhos que se conectam ao telemóvel, filtram ruído de fundo em restaurantes e até traduzem idiomas em tempo real. 'Já não são apenas amplificadores de som', explica a técnica Ana Lopes. 'São dispositivos inteligentes que melhoram a qualidade de vida'. O preço, contudo, continua a ser uma barreira: entre 800 e 3000 euros por aparelho, com reembolsos do SNS que cobrem apenas uma fração.
No Alentejo, descobrimos uma realidade diferente. Em pequenas aldeias, os idosos enfrentam outro obstáculo: a distância. 'Para fazer um teste auditivo, tenho de ir a Évora', conta Joaquim, 74 anos. 'São 50 quilómetros de autocarro'. A telemedicina começa a chegar, mas lentamente. Enquanto isso, as associações de surdos lutam por mais intérpretes de língua gestual portuguesa nos serviços públicos.
A alimentação também tem um papel surpreendente. Nutricionistas explicam-nos que alimentos ricos em zinco, magnésio e ómega-3 podem proteger a audição. 'O peixe gordo, as nozes e os espinafres são aliados dos ouvidos', diz a Dra. Inês Torres, que estuda a relação entre nutrição e saúde auditiva há uma década. Mas quantos portugueses sabem disso?
Nas farmácias, a venda livre de protetores auditivos aumentou 40% nos últimos três anos. 'As pessoas estão mais conscientes', confirma o farmacêutico Rui Costa. Mas será suficiente? Enquanto testemunhamos um concerto de fado onde o som atinge 95 decibéis (o limite seguro são 85), percebemos que a cultura do 'quanto mais alto, melhor' ainda domina.
O futuro soa a esperança. Investigadores da Universidade do Porto desenvolvem um aparelho auditivo que se adapta automaticamente a diferentes ambientes sonoros. 'Será como ter um assistente pessoal para os ouvidos', promete o engenheiro Miguel Santos. Enquanto isso, aplicações móveis permitem testes auditivos básicos em casa, democratizando o acesso ao diagnóstico.
No final desta investigação, ficam perguntas no ar. Porque é que a saúde auditiva não tem a mesma prioridade que a visão nos cuidados de saúde primários? Quando é que deixaremos de ver os aparelhos auditivos como símbolos de incapacidade e passaremos a vê-los como tecnologias de melhoria de vida, como os óculos? A resposta, como o som, viaja pelo ar à espera de ser captada. Enquanto isso, Maria volta a ajustar o aparelho no café e sorri: 'Agora ouço os pássaros lá fora. Já não me lembrava desse som'.
Esta é a verdadeira revolução auditiva: não apenas ouvir, mas voltar a escutar o mundo em toda a sua riqueza sonora. Num país de poetas e fadistas, onde a palavra e a música são património, cuidar dos ouvidos é preservar a própria essência da cultura portuguesa. O desafio está lançado: vamos fazer com que Portugal ouça melhor?
O som que nos escapa: uma investigação sobre a saúde auditiva em Portugal