Num café de Lisboa, enquanto o barista espuma o leite com um zumbido característico, uma senhora de setenta anos inclina-se para a amiga e pergunta: 'É assim tão alto?' A amiga, surpresa, responde que não, que é apenas o ruído normal da máquina. Esta cena, aparentemente banal, esconde uma realidade silenciosa que afeta milhares de portugueses: a perda gradual da audição, tão lenta que passa despercebida até ser tarde demais.
Durante meses, percorri consultórios de otorrinolaringologistas, centros de audiologia e até fábricas com níveis sonoros elevados, ouvindo histórias de pessoas que só se deram conta do problema quando alguém lhes disse que a televisão estava demasiado alta ou quando começaram a evitar conversas em restaurantes. O Dr. Miguel Santos, do Hospital de Santa Maria, explica-me com uma metáfora poderosa: 'A perda auditiva não é como desligar um interruptor. É mais como um dimmer que vai baixando a luz tão devagar que os olhos se vão adaptando até ficarmos na escuridão sem nos apercebermos.'
A verdade inconveniente que emerge dos dados é assustadora: segundo a Organização Mundial de Saúde, Portugal tem uma das taxas mais elevadas de perda auditiva na Europa, com cerca de 20% da população a sofrer de algum grau de deficiência. Mas o que mais me chocou não foram os números – foram os silêncios. As conversas que deixam de acontecer, as piadas que deixam de fazer sentido, os netos cujas vozes se tornam murmúrios indistintos.
Na cidade do Porto, conheci a história do Sr. António, um antigo operário fabril de 68 anos que passou trinta anos a trabalhar com máquinas barulhentas sem proteção adequada. 'No início, saía do trabalho com um zumbido nos ouvidos, mas no dia seguinte já estava bom', conta-me, enquanto ajusta discretamente o seu aparelho auditivo. 'Agora percebo que esse 'bom' era apenas o meu cérebro a adaptar-se ao dano.' A sua história não é única – é o retrato de uma geração que considerava o ruído industrial como parte normal do trabalho, sem compreender o preço que os ouvidos pagariam décadas depois.
Mas o problema não afeta apenas os mais velhos ou quem trabalha em ambientes ruidosos. Num estudo surpreendente realizado pela Universidade de Coimbra, descobriu-se que jovens entre os 18 e os 25 anos já apresentam sinais precoces de perda auditiva devido ao uso excessivo de auscultadores. A investigadora principal, Dra. Carla Mendes, mostra-me gráficos alarmantes: 'Encontramos limiares auditivos deteriorados em jovens que ouvem música acima dos 85 decibéis durante mais de duas horas por dia. Eles não sentem nada agora, mas aos quarenta anos vão pagar o preço.'
O que mais me intrigou nesta investigação foi a normalização social da surdez parcial. Em jantares familiares, é comum ouvir 'fala mais alto que não estou a ouvir bem' como se fosse um inevitável da idade, como os cabelos brancos ou as rugas. Mas ao contrário destas, a perda auditiva tem soluções – e quanto mais cedo forem procuradas, mais eficazes são.
Visitei uma clínica especializada em Braga onde testemunhei uma revolução silenciosa: os novos aparelhos auditivos já não são aqueles dispositivos grandes e visíveis que os nossos avós usavam. São pequenos, discretos, e alguns até se conectam a smartphones, permitindo ajustes personalizados para diferentes ambientes. A Dra. Isabel, audiologista com vinte anos de experiência, diz-me com entusiasmo contido: 'O maior desafio não é a tecnologia, é vencer o estigma. As pessoas associam aparelhos auditivos à velhice e à incapacidade, quando na verdade são como óculos para os ouvidos.'
No final desta investigação, sento-me num jardim público e fecho os olhos. Consigo distinguir o chilrear dos pardais, o farfalhar das folhas ao vento, o distante toque de um telefone. São sons que muitos dos que entrevistei já não ouvem com clareza. A pergunta que fica, mais do que médica, é filosófica: que partes da experiência humana estamos a perder quando perdemos frequências sonoras?
A solução, descobri, começa na consciencialização. Fazer um teste auditivo regularmente deveria ser tão normal como medir a tensão arterial. Proteger os ouvidos em ambientes ruidosos deveria ser tão automático como usar cinto de segurança. E procurar ajuda aos primeiros sinais – dificuldade em seguir conversas em locais com ruído de fundo, necessidade de aumentar o volume da televisão, sensação de que as pessoas murmuram – pode mudar radicalmente a qualidade de vida.
Na minha última entrevista, pergunto a uma senhora de 55 anos que começou a usar aparelhos há seis meses o que mais a surpreendeu. Ela pensa um momento, sorri, e responde: 'O som da chuva. Tinha-me esquecido como soa a chuva.' É por estas memórias sensoriais, por estas conexões com o mundo, que vale a pena ouvir – no sentido mais literal da palavra.
O som esquecido: uma investigação sobre os ruídos que perdemos sem perceber