Há um ruído que não se ouve, mas que ressoa em cada canto da nossa existência. É o silêncio que se instala quando os sons do mundo começam a desvanecer-se, quando o riso das crianças se torna um murmúrio distante e a música perde as suas notas mais agudas. Esta não é uma história sobre surdez, mas sobre tudo o que perdemos quando deixamos de ouvir plenamente.
Percorri consultórios, laboratórios e lares de idosos, e em cada lugar encontrei a mesma narrativa silenciosa. A Dona Maria, de 78 anos, confessou-me com os olhos marejados: "Deixei de ir às festas da aldeia porque já não acompanho as conversas. Sinto-me uma intrusa no meu próprio mundo." O seu caso não é isolado. Em Portugal, estima-se que mais de 30% da população acima dos 65 anos sofra de perda auditiva significativa, mas menos de metade procura ajuda.
O que descobri vai além dos números. Existe um estigma profundamente enraizado na nossa cultura que associa aparelhos auditivos à velhice e à incapacidade. "É mais fácil admitir que se precisa de óculos do que de um aparelho auditivo," explicou-me o Dr. Ricardo Sousa, otorrinolaringologista com 25 anos de experiência. "As pessoas esperam em média sete anos desde que notam os primeiros sintomas até procurarem ajuda. Sete anos de isolamento gradual."
Mas a revolução está a acontecer nos bastidores. Visitei um laboratório em Braga onde jovens engenheiros desenvolvem dispositivos do tamanho de uma ervilha, com inteligência artificial que aprende os ambientes sonoros do utilizador. "Os novos aparelhos não amplificam apenas o som," mostrou-me a engenheira Carla Mendes, "conseguem isolar a voz de uma pessoa específica numa sala barulhenta, como um microfone direcional da natureza."
O mais surpreendente da minha investigação foi descobrir o impacto cognitivo. Estudos recentes da Universidade do Porto revelam que a perda auditiva não tratada aumenta em 50% o risco de declínio cognitivo. O cérebro, privado de estímulos sonoros, começa a atrofiar-se. "Ouvir é um exercício cerebral completo," explicou a neurocientista Dra. Isabel Monteiro. "Quando deixamos de ouvir, deixamos partes do nosso cérebro em pausa."
Encontrei histórias de resiliência que desafiam o silêncio. O João, músico de 42 anos que perdeu parte da audição após uma infeção, adaptou-se usando tecnologia que transforma as vibrações sonoras em estímulos táteis. "Aprendi a 'sentir' a música de outra forma," contou-me enquanto afiava as cordas da sua guitarra. A sua experiência levou-o a criar workshops para pessoas com deficiência auditiva, provando que a criat humana não tem limites.
Nas escolas, observei programas pioneiros de rastreio auditivo que identificam problemas em crianças antes que afetem o desenvolvimento da linguagem. A professora Ana, de uma escola básica em Setúbal, mostrou-me como pequenas adaptações na sala de aula - como colocar a criança com dificuldades auditivas na primeira fila - podem mudar completamente o seu percurso académico.
O maior desafio, descobri, não é tecnológico mas cultural. Enquanto sociedade, precisamos de normalizar o cuidado auditivo como normalizamos o check-up dentário ou a consulta de oftalmologia. "A audição é o sentido da conexão," refletiu o psicólogo Miguel Torres. "Quando a perdemos, perdemos pedaços das nossas relações."
Terminei a minha investigação num concerto adaptado para pessoas com perda auditiva. Vi idosos a dançar sentindo as vibrações no chão, crianças a sorrir quando as luzes sincronizadas com a música pintavam o ar. Havia ali uma alegria contagiante, uma celebração do som em todas as suas formas. Aprendi que ouvir não é apenas um processo fisiológico - é uma ponte entre as pessoas, uma forma de amor ativo.
O futuro da saúde auditiva em Portugal está a ser escrito agora, não apenas nos consultórios médicos, mas nas conversas de café que quebram tabus, nas políticas públicas que incluem rastreios universais, e na coragem de cada pessoa que decide recuperar o seu lugar no mundo dos sons. O silêncio pode ser confortável, mas a vida acontece no ruído maravilhoso da existência partilhada.
O som esquecido: uma investigação sobre o silêncio que nos rouba a vida