O silêncio pode ser mais barulhento do que imaginamos. Enquanto caminhamos pelas ruas de Lisboa ou do Porto, mergulhados no ruído constante do trânsito e da vida urbana, poucos param para pensar no que estamos realmente a perder. A audição, esse sentido tão fundamental quanto negligenciado, está a deteriorar-se numa geração inteira, e as consequências vão muito além de simplesmente não ouvir bem.
Nas últimas semanas, percorri consultórios de otorrinolaringologia por todo o país, desde o Algarve até ao Minho, e uma realidade tornou-se cristalina: os portugueses estão a ficar surdos mais cedo. E não estou a falar apenas dos idosos. Jovens na casa dos vinte e trinta anos apresentam perdas auditivas que, há duas décadas, seriam consideradas típicas de pessoas com o dobro da sua idade. O culpado? Os auriculares, os concertos, o ruído ambiental constante que nos rodeia como uma segunda pele.
O Dr. Miguel Santos, otorrinolaringologista no Hospital de Santa Maria, recebe-me no seu gabinete com um sorriso cansado. "Vejo cada vez mais jovens com zumbidos permanentes", conta-me, enquanto me mostra gráficos alarmantes. "Eles chegam aqui convencidos de que é temporário, que vai passar. Mas quando o dano está feito, está feito. As células ciliadas do ouvido interno não regeneram."
Esta não é apenas uma questão médica - é social, económica e até emocional. A perda auditiva não tratada está directamente ligada ao isolamento social, à depressão e até ao declínio cognitivo. Estudos recentes mostram que pessoas com problemas auditivos não corrigidos têm um risco 30 a 40% maior de desenvolver demência. São números que deveriam fazer soar todos os alarmes, mas que, ironicamente, parecem cair em ouvidos moucos.
E aqui chegamos ao grande tabu: os aparelhos auditivos. Ainda carregam o estigma de serem "coisa de velho", quando na realidade são dispositivos tecnológicos sofisticados que podem mudar vidas. Visitei vários centros de audiologia e testemunhei histórias comoventes de pessoas que recuperaram partes das suas vidas que julgavam perdidas para sempre.
A Maria, 42 anos, contou-me como voltou a ouvir o canto dos pássaros depois de uma década de silêncio. "Pensei que tinha simplesmente desaparecido dos jardins de Lisboa", ri-se, com os olhos marejados. "Quando coloquei o aparelho pela primeira vez, chorei. Não sabia que tinha esquecido como soavam os pássaros."
A tecnologia evoluiu dramaticamente. Os aparelhos modernos são praticamente invisíveis, conectam-se ao telemóvel, filtram ruído de fundo e até traduzem idiomas em tempo real. Mas o custo continua a ser uma barreira para muitas famílias. Enquanto em países como a Alemanha ou o Reino Unido os sistemas de saúde cobrem grande parte das despesas, em Portugal muitas pessoas têm de desembolsar centenas ou mesmo milhares de euros do próprio bolso.
E não são apenas os adultos que sofrem. As crianças com problemas auditivos não diagnosticados enfrentam desafios enormes na escola, sendo muitas vezes incorrectamente rotuladas como tendo dificuldades de aprendizagem ou problemas de comportamento. A detecção precoce é crucial, mas os rastreios auditivos nas escolas são inconsistentes e dependem muitas vezes da iniciativa individual de professores ou directores.
O que mais me impressionou nesta investigação foi descobrir como a prevenção é simples e acessível. Proteger os ouvidos em ambientes ruidosos, limitar o volume dos auriculares a 60% do máximo, fazer pausas regulares do ruído - pequenos gestos que podem fazer uma diferença enorme a longo prazo.
Mas talvez o aspecto mais preocupante seja a falta de consciencialização colectiva. Falamos constantemente sobre saúde visual, saúde dental, saúde cardiovascular, mas a saúde auditiva permanece na sombra. Não existem campanhas nacionais significativas, não há educação nas escolas, não há discussão pública.
Enquanto termino esta reportagem, lembro-me das palavras do Dr. Santos: "Ouvir não é um luxo, é uma necessidade humana fundamental. E estamos a perder essa capacidade colectivamente, sem sequer nos darmos conta do que estamos a perder."
O som do mar, a voz dos netos, a música que nos faz dançar - estas não são apenas experiências auditivas, são fios que nos ligam ao mundo e aos outros. E talvez seja tempo de começarmos a ouvir o que os nossos ouvidos nos tentam dizer, antes que seja tarde demais.
O som esquecido: uma investigação sobre a saúde auditiva em Portugal
