Num café de Lisboa, Maria, 68 anos, inclina-se para a frente como quem partilha um segredo. 'Durante anos, pensei que as pessoas estavam a murmurar de propósito', confessa, enquanto ajusta discretamente o pequeno aparelho atrás da orelha. 'O pior não era deixar de ouvir os pássaros. Era deixar de ouvir o riso dos meus netos.' A sua história não é única. Em Portugal, cerca de 30% da população acima dos 65 anos sofre de perda auditiva significativa, mas menos de metade procura ajuda. Porquê? O estigma, o custo e uma desinformação teimosa mantêm milhões presos num mundo progressivamente mais silencioso.
A tecnologia moderna transformou os aparelhos auditivos de dispositivos médicos volumosos em acessórios quase invisíveis, mas o preconceito persiste. 'As pessoas associam-nos à velhice, à incapacidade', explica o Dr. Ricardo Sousa, audiologista com 20 anos de experiência. 'Mas hoje em dia, um jovem com headphones gigantes no metro não choca ninguém, enquanto alguém com um aparelho auditivo quase escondido ainda provoca olhares curiosos.' Esta ironia social revela como a saúde auditiva continua a ser a parente pobre da nossa consciência coletiva sobre bem-estar.
Nos últimos cinco anos, os avanços foram revolucionários. Os novos aparelhos não amplificam simplesmente o som - inteligência artificial permite-lhes distinguir uma conversa num restaurante barulhento do barulho de talheres, conectam-se diretamente ao telemóvel para chamadas e música, e alguns modelos monitorizam até a frequência cardíaca. 'É como ter um assistente pessoal nos ouvidos', descreve Pedro, 42 anos, programador que desenvolveu perda auditiva precoce. 'Ajusta-se automaticamente quando entro no metro, quando começo a cozinhar, quando vou à praia.'
Mas esta sofisticação tem um preço. Em Portugal, um par de aparelhos de gama alta pode custar mais de 3.000 euros, um valor proibitivo para muitas famílias. O SNS cobre parte das despesas, mas as listas de espera alongam-se e a burocracia desencoraja. Enquanto isso, surgem alternativas disruptivas: assinaturas mensais que incluem manutenção e upgrades, aparelhos recondicionados com garantia, e até soluções 'over-the-counter' para casos ligeiros, semelhantes aos que existem nos Estados Unidos desde 2022.
O maior desafio, contudo, pode não ser tecnológico nem financeiro, mas psicológico. O cérebro humano adapta-se à privação sensorial, reorganizando-se para compensar a falta de estímulos auditivos. Quando finalmente se coloca um aparelho, o cérebro precisa de reaprender a processar sons há muito esquecidos. 'Os primeiros dias são uma avalanche sensorial', conta Ana, 55 anos. 'Chorava ao ouvir a chuva contra a janela, porque não me lembrava de como soava. Mas depois vinha a fadiga mental - o cérebro não estava habituado a trabalhar tanto.'
Esta fadiga auditiva é pouco discutida, mas fundamental. Especialistas recomendam uma adaptação progressiva: começar com algumas horas por dia em ambientes calmos, aumentando gradualmente a exposição. 'É como aprender a andar de novo', compara o Dr. Sousa. 'E tal como na fisioterapia, a consistência é mais importante que a intensidade.'
O futuro promete ainda mais integração. Investigadores portugueses no INESC estão a desenvolver aparelhos que não só melhoram a audição, mas traduzem línguas em tempo real, identificam sons específicos (como campainhas ou alarmes de fumo) e até alertam para padrões auditivos potencialmente perigosos. 'Imagine que está num concerto e o aparelho avisa que o volume está a danificar os seus ouvidos', ilustra uma das investigadoras. 'Ou que traduz automaticamente uma conversa com um turista.'
Enquanto isso, nas escolas, programas de rastreio auditivo ainda são exceção, não regra. Crianças com problemas auditivos não diagnosticados são frequentemente confundidas com distraídas ou com dificuldades de aprendizagem. 'Detetar cedo muda tudo', insiste uma terapeuta da fala que trabalha com crianças. 'A linguagem desenvolve-se principalmente nos primeiros anos de vida. Perder essa janela é limitar um potencial para sempre.'
No café, Maria termina o seu café e levanta-se. 'Agora ouço os pássaros outra vez', sorri. 'Mas mais importante: ouço o meu marido a ressonar. E isso, acredite, é a melhor prova de que estou viva.' O seu testemunho ecoa o de muitos: recuperar a audição não é apenas sobre sons, é sobre reconectar-se ao mundo, às pessoas, à própria vida. Num país que envelhece rapidamente, cuidar dos ouvidos pode ser uma das formas mais profundas de cuidar da nossa humanidade coletiva.
As soluções existem, a tecnologia evoluiu, mas o primeiro passo - reconhecer que se precisa de ajuda - continua a ser o mais difícil. Quebrar o silêncio sobre a perda auditiva é, paradoxalmente, a forma mais eficaz de devolver o som a quem o perdeu. E nessa missão, cada conversa, cada partilha, cada aparelho discretamente usado é uma pequena revolução contra o isolamento que o silêncio impõe.
O som esquecido: histórias de quem recuperou o mundo através dos ouvidos