Num mundo cada vez mais barulhento, onde o zumbido dos telemóveis compete com o roncar do trânsito e o murmúrio constante dos escritórios abertos, poucos param para escutar o que realmente importa: o silêncio. A perda auditiva deixou de ser um problema exclusivo da terceira idade para se tornar uma epidemia silenciosa que afecta cada vez mais jovens, e ninguém parece estar a prestar atenção ao alarme que soa cada vez mais baixo.
Caminhamos pelas ruas das nossas cidades com auriculares colados aos ouvidos, aumentando o volume para abafar o caos exterior, sem perceber que estamos a cavar a nossa própria sepultura auditiva. Os concertos, as festas, até os cinemas – todos se transformaram em campos de batalha onde as nossas orelhas são as primeiras vítimas. E o pior? A maioria de nós nem sequer sabe que está a perder capacidade auditiva até ser tarde demais.
Os números são assustadores. Segundo especialistas, uma em cada cinco pessoas com menos de 30 anos já apresenta sinais de perda auditiva precoce. Os adolescentes que cresceram com smartphones nos ouvidos estão a chegar à idade adulta com capacidades auditivas equivalentes às dos seus avós. E ninguém está a falar sobre isto nos noticiários da noite.
Mas o problema vai além dos decibéis. A poluição sonora urbana transformou-se num factor de stress crónico que afecta não só os ouvidos, mas todo o organismo. Dormimos pior, concentramo-nos menos, ficamos mais irritáveis – e culpamos o trabalho, a família, a vida moderna, sem nunca suspeitar que o verdadeiro culpado pode estar no ruído constante que nos rodeia.
O mais irónico é que, enquanto investimos fortunas em suplementos alimentares, ginásios de última geração e retiros de bem-estar, negligenciamos completamente o sentido que mais nos conecta com o mundo. Fechamo-nos em bolhas sonoras pessoais, ignorando os sinais de alerta que o nosso corpo nos envia: os zumbidos ocasionais que atribuímos ao cansaço, a dificuldade em acompanhar conversas em ambientes ruidosos que justificamos com distracção.
Nas empresas, a produtividade cai quando o ruído de fundo ultrapassa certos limites. Nas escolas, as crianças têm mais dificuldade em aprender quando a acústica das salas é deficiente. Nos lares, os idosos isolam-se ainda mais quando deixam de conseguir acompanhar as conversas à mesa. A perda auditiva não é apenas um problema médico – é um problema social que nos fragmenta e isola.
E o que estamos a fazer para travar esta epidemia? Quase nada. A legislação sobre poluição sonora é antiquada e raramente aplicada. Os locais de entretenimento continuam a bombear música a volumes perigosos. Os fabricantes de dispositivos electrónicos não incluem avisos suficientemente claros sobre os riscos do volume excessivo. Vivemos na era da informação, mas desinformados sobre um dos sentidos mais importantes que possuímos.
Há, no entanto, esperança. A nova geração de aparelhos auditivos já pouco tem a ver com aqueles dispositivos grandes e visíveis que os nossos avós usavam. São discretos, inteligentes, alguns até conectam-se ao telemóvel como se fossem uns auriculares normais. A tecnologia que nos prejudicou pode ser a mesma que nos salva – se a soubermos usar com sabedoria.
Mas mais importante do que qualquer aparelho é a consciencialização. Aprender a proteger os ouvidos não deveria ser menos importante do que aprender a escovar os dentes. Fazer pausas auditivas durante o dia, baixar o volume dos dispositivos, usar protecção em ambientes ruidosos – gestos simples que podem fazer a diferença entre envelhecer com uma audição saudável ou passar os últimos anos num mundo cada vez mais silencioso e solitário.
O som da vida merece ser preservado. Desde o riso das crianças ao canto dos pássaros, desde a melodia favorita ao sussurro de quem amamos – tudo isso pode desaparecer gradualmente, sem que demos por isso, até que um dia acordamos num mundo mais silencioso do que gostaríamos. A questão não é se vamos perder audição com a idade. A questão é quanto estamos dispostos a perder antes do tempo.
Esta é uma investigação que não pode esperar por manchetes ou campanhas de sensibilização. Começa em cada um de nós, no momento em que decidimos baixar o volume, fazer uma pausa, ou simplesmente parar para escutar o que realmente importa. Porque no fim, o som mais importante que podemos preservar é o da nossa própria humanidade – e esse, felizmente, ainda não se perdeu completamente.
O som esquecido: como o ruído do dia a dia está a roubar a nossa audição sem darmos conta