O som esquecido: como a saúde auditiva molda a nossa experiência do mundo

O som esquecido: como a saúde auditiva molda a nossa experiência do mundo
Num café de Lisboa, um homem de meia-idade inclina-se para a frente, o rosto contraído num esforço visível. As palavras do amigo desaparecem no ruído de fundo, substituídas por um zumbido constante que há anos se instalou nos seus ouvidos. Esta cena, repetida diariamente em Portugal, revela uma verdade silenciosa: a nossa relação com o som está em crise, e poucos estão a prestar atenção.

A perda auditiva não chega como um terramoto, mas como a erosão lenta de uma falésia. Primeiro, são os agudos que fogem - o chilrear dos pássaros na primavera, o tilintar das chaves. Depois, as vozes femininas começam a embaciar, como se falassem através de vidro fosco. Por fim, o mundo encolhe: as conversas em grupo tornam-se labirintos sonoros, os concertos perdem a magia, o isolamento instala-se sorrateiramente.

O que poucos percebem é que os ouvidos são muito mais do que receptáculos de som. São órgãos dinâmicos, sistemas complexos que traduzem vibrações em emoção, informação, conexão. Quando falham, não perdemos apenas decibéis - perdemos pedaços da nossa humanidade. A voz da neta a contar a primeira história inventada, o sussurro do mar numa praia deserta, a melodia que nos transporta a outra época: tudo se desvanece.

Em Portugal, o problema assume contornos preocupantes. Dados recentes sugerem que mais de 30% da população acima dos 50 anos sofre de perda auditiva significativa, mas menos de metade procura ajuda. O estigma persiste, alimentado pela ideia errada de que aparelhos auditivos são símbolos de velhice ou incapacidade. Enquanto isso, a tecnologia avança a passos largos, oferecendo soluções discretas e inteligentes que restauram não apenas a audição, mas a qualidade de vida.

Os mitos que persistem sobre saúde auditiva formam uma barreira quase tão sólida como o silêncio que pretendem combater. 'Os aparelhos são muito visíveis', dizem alguns, ignorando os modelos quase invisíveis que existem hoje. 'São desconfortáveis', afirmam outros, sem experimentar os dispositivos leves como penas da nova geração. O maior equívoco? Achar que se pode adiar a solução sem consequências. A ciência é clara: a privação auditiva acelera o declínio cognitivo, isolando as pessoas num mundo cada vez mais pequeno.

Mas há esperança nas histórias de reconquista. Como a de Maria, 68 anos, que recuperou os serões em família depois de uma década de isolamento progressivo. Ou a de João, 45, músico, que descobriu nuances nas suas composições que julgara perdidas para sempre. Estes não são casos excecionais - são testemunhos do que é possível quando se quebram preconceitos e se abraça a tecnologia.

A revolução não está apenas nos aparelhos, mas na forma como encaramos a saúde auditiva. Especialistas defendem que os check-ups auditivos deveriam ser tão rotineiros como as idas ao dentista ou ao oftalmologista. Afinal, os ouvidos merecem o mesmo cuidado que damos aos outros sentidos. Em países como a Dinamarca, programas de rastreio auditivo em escolas primárias já identificam precocemente problemas que, tratados a tempo, não condicionam o desenvolvimento das crianças.

O ruído ambiental das cidades portuguesas acrescenta outra camada ao problema. Os níveis sonoros em muitas zonas urbanas excedem frequentemente os limites considerados seguros, contribuindo para o aumento precoce de problemas auditivos. A solução passa não apenas por proteção individual, mas por políticas urbanísticas que valorizem o silêncio como direito fundamental.

O futuro da saúde auditiva em Portugal depende de uma mudança cultural. Precisamos de falar de ouvidos com a mesma naturalidade com que falamos de visão. Precisamos de normalizar os aparelhos auditivos como normalizámos os óculos. Acima de tudo, precisamos de reconhecer que ouvir bem não é um luxo - é uma dimensão essencial do bem-estar, tão crucial como respirar ar puro ou beber água limpa.

Enquanto escrevo estas linhas, faço uma pausa para escutar. O ranger da cadeira, o teclar distante de um colega, o murmúrio da rua lá fora. Sons banais, insignificantes - até os perdermos. A saúde auditiva não se trata apenas de corrigir deficiências, mas de preservar a riqueza sensorial que torna a vida digna de ser vivida. Num mundo cada vez mais barulhento, talvez o ato mais revolucionário seja aprender a escutar - a nós mesmos, aos outros, ao planeta. Comecemos pelos ouvidos.

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