O som do silêncio: quando a perda auditiva se torna uma epidemia silenciosa

O som do silêncio: quando a perda auditiva se torna uma epidemia silenciosa
Num café movimentado de Lisboa, Maria, 68 anos, observa as conversas à sua volta como quem assiste a um filme mudo. Os lábios movem-se, as expressões faciais mudam, mas o som chega-lhe distorcido, como se estivesse debaixo de água. Esta realidade, que muitos consideram um simples sinal de envelhecimento, esconde uma crise de saúde pública que afecta mais de 360 mil portugueses – e a maioria nem sequer sabe.

A perda auditiva não escolhe idades. Enquanto tradicionalmente associávamos este problema à terceira idade, os otorrinolaringologistas alertam para um fenómeno preocupante: cada vez mais jovens entre os 30 e os 40 anos começam a mostrar sinais de deterioração auditiva precoce. O culpado? O nosso estilo de vida hiperconectado, onde os auriculares se tornaram extensões dos nossos corpos e a poluição sonora urbana atinge níveis historicamente sem precedentes.

O que mais assusta os especialistas não é a perda em si, mas o tempo médio que as pessoas demoram a procurar ajuda: sete anos. Sete anos de mal-entendidos, de isolamento social progressivo, de frustração acumulada. Durante este período, o cérebro sofre uma espécie de atrofia auditiva – perde a capacidade de processar sons complexos, tornando a reabilitação mais difícil quando finalmente se procura tratamento.

A tecnologia moderna trouxe consigo uma revolução discreta nos aparelhos auditivos. Já não são aqueles dispositivos bege e barulhentos que os nossos avós usavam. Os modelos actuais são mini-computadores que se adaptam automaticamente a diferentes ambientes sonoros, conectam-se via Bluetooth aos nossos smartphones e até traduzem línguas em tempo real. Mas a inovação mais significativa pode estar na forma como são personalizados – através de inteligência artificial, aprendem os padrões auditivos do utilizador e optimizam-se continuamente.

O estigma social continua a ser o maior obstáculo. Muitos associam aparelhos auditivos a incapacidade, a velhice, a algo de que se deve ter vergonha. Esta percepção está tão enraizada que mesmo quando as pessoas reconhecem ter problemas, resistem à solução. O que não percebem é que a tecnologia actual tornou estes dispositivos quase invisíveis – alguns modelos ficam completamente dentro do canal auditivo, impossíveis de detectar a olho nu.

O impacto da perda auditiva não tratada vai muito além de não ouvir bem. Estudos recentes mostram uma correlação alarmante entre problemas auditivos e declínio cognitivo. O cérebro, privado de estimulação auditiva, começa a deteriorar-se mais rapidamente. A solidão imposta pela dificuldade em participar em conversas sociais pode levar a depressão e ansiedade. No local de trabalho, a perda auditiva não diagnosticada está por trás de muitos casos de baixo rendimento e conflitos laborais.

O diagnóstico precoce é a chave. Os especialistas recomendam check-ups auditivos regulares, especialmente para quem trabalha em ambientes ruidosos ou usa auriculares frequentemente. Muitas farmácias e centros de saúde oferecem rastreios gratuitos que demoram menos de quinze minutos. Detectar um problema no início pode significar a diferença entre uma correção simples e uma perda irreversível.

A adaptação a um aparelho auditivo é um processo que requer paciência. Nos primeiros dias, o cérebro, acostumado ao silêncio ou aos sons abafados, fica sobrecarregado com a riqueza sonora que repentinamente recebe. É normal sentir-se cansado após algumas horas de uso. Mas dentro de duas a quatro semanas, a maioria dos utilizadores reporta uma melhoria dramática na qualidade de vida – redescoberta de sons esquecidos, como o canto dos pássaros pela manhã ou o sussurro das ondas na praia.

O custo continua a ser uma barreira para muitos. Enquanto em países como a Dinamarca ou o Reino Unido os aparelhos auditivos são parcial ou totalmente comparticipados pelo estado, em Portugal o investimento ainda recai maioritariamente sobre o utente. No entanto, o mercado está a evoluir rapidamente, com opções mais acessíveis a surgirem constantemente. Alguns seguros de saúde começam a incluir coberturas para aparelhos auditivos, reconhecendo-os como essenciais para o bem-estar geral.

O futuro da saúde auditiva promete avanços ainda mais revolucionários. Investigadores estão a desenvolver aparelhos que não apenas amplificam o som, mas que conseguem isolá-lo selectivamente – permitindo, por exemplo, ouvir claramente a pessoa com quem se está a conversar num restaurante barulhento. Outra linha de investigação promissora envolve regeneração das células ciliadas do ouvido interno através de terapias genéticas, potencialmente revertendo alguns tipos de perda auditiva.

Enquanto isso, Maria decidiu finalmente procurar ajuda. Após uma avaliação completa, escolheu um aparelho quase invisível. Na primeira semana, chorou ao ouvir o neto a dizer 'avó' com clareza pela primeira vez em anos. A sua história não é única – representa milhares de portugueses que redescobrem o mundo dos sons todos os anos. O silêncio pode ser confortável, mas a vida acontece no ruído, na música, nas conversas, nos sons que tecem a tapeçaria da experiência humana.

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