Num café de Lisboa, Maria, 68 anos, observa o movimento da rua enquanto mexe lentamente a colher no café. As conversas à sua volta são como sussurros distantes, fragmentos de diálogos que se perdem antes de chegarem ao seu entendimento. 'Às vezes sinto-me como se estivesse dentro de um aquário', confessa, 'vejo os lábios a moverem-se, mas o som chega-me abafado, como se houvesse uma parede de vidro entre mim e o mundo'.
Esta metáfora do aquário é mais comum do que possamos imaginar. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde, Portugal tem cerca de 1,5 milhões de pessoas com algum grau de perda auditiva, um número que tende a aumentar com o envelhecimento da população. Mas o que significa realmente viver num mundo onde os sons chegam distorcidos ou nem chegam?
A perda auditiva não é apenas uma questão médica - é uma experiência social profundamente transformadora. As pessoas que lidam com esta condição desenvolvem estratégias de sobrevivência quase invisíveis para os outros. Aprender a ler lábios torna-se uma habilidade necessária, a arte de disfarçar quando não se percebeu o que foi dito transforma-se num ritual diário, e a fadiga mental de tentar acompanhar conversas torna-se uma companheira constante.
O impacto nas relações familiares é particularmente significativo. João, de 72 anos, partilha como a sua relação com os netos se transformou: 'Eles falam tão rápido e com tantas gírias que muitas vezes só percebo metade. Acabo por sorrir e acenar com a cabeça, mas sinto-me excluído das suas vidas'. Esta desconexão geracional agravada pela perda auditiva cria fossos emocionais que vão muito para além da dificuldade em ouvir.
No local de trabalho, o desafio assume contornos diferentes. Ana, consultora de 45 anos, descobriu recentemente que tinha perda auditiva bilateral. 'Nas reuniões, tentava adivinhar o que estava a ser dito pelos contextos. Cometi erros graves por não ter percebido instruções correctamente'. O estigma ainda associado aos aparelhos auditivos faz com que muitos profissionais adiem o diagnóstico e o tratamento, arriscando as suas carreiras.
A tecnologia trouxe avanços notáveis, mas também novos desafios. Os aparelhos auditivos modernos são pequenas maravilhas da engenharia, capazes de se conectarem a smartphones e televisões, mas o custo ainda é proibitivo para muitas famílias. Em Portugal, o acesso a estes dispositivos através do Serviço Nacional de Saúde tem limitações significativas, criando desigualdades no tratamento.
Curiosamente, a pandemia veio alterar dinâmicas sociais que afectavam particularmente quem tem dificuldades auditivas. O uso generalizado de máscaras tornou impossível a leitura labial, enquanto o distanciamento social aumentou o isolamento. Por outro lado, a popularização das videochamadas trouxe benefícios inesperados - a possibilidade de usar legendas automáticas e controlar o volume individualmente.
A relação entre saúde auditiva e saúde mental é uma das áreas mais negligenciadas. Estudos recentes mostram que a perda auditiva não tratada aumenta significativamente o risco de depressão e demência. O esforço constante para processar sons incompletos sobrecarrega o cérebro, enquanto o isolamento social resultante da dificuldade em comunicar cria condições perfeitas para problemas psicológicos.
Mas há esperança no horizonte. Projectos comunitários por todo o país estão a criar espaços 'amigos dos ouvidos', com melhor acústica e sistemas de amplificação discretos. Restaurantes, teatros e até igrejas começam a adaptar-se, reconhecendo que a inclusão auditiva beneficia toda a comunidade.
A forma como encaramos a perda auditiva está a mudar lentamente. Deixa de ser vista como um sinal de velhice para ser entendida como uma condição que pode afectar pessoas de todas as idades - desde jovens expostos a volumes excessivos até profissionais sujeitos a ruído ocupacional.
O verdadeiro desafio, talvez, não seja tecnológico mas cultural. Precisamos de normalizar as conversas sobre saúde auditiva, tornar os check-ups regulares tão comuns como ir ao dentista, e criar ambientes onde pedir para repetir algo não seja constrangedor. Porque no fundo, a capacidade de ouvir não é apenas sobre sons - é sobre conexão, sobre partilha, sobre pertença.
Maria, do café de Lisboa, resume melhor do que ninguém: 'Aprendi que ouvir vai muito para além dos ouvidos. É sobre estar presente, sobre querer realmente compreender o outro. E isso, felizmente, não se perde com a idade'.
O som do silêncio: como a perda auditiva está a moldar as nossas relações
