Enquanto os olhos se fixam nas flutuações diárias do mercado grossista, uma revolução silenciosa está a germinar nos telhados, nos quintais e nas assembleias de condomínio de Portugal. As comunidades de energia renovável, esse conceito que soava a utopia há uma década, estão a transformar-se na resposta mais pragmática à crise energética e na mais subtil subversão do modelo centralizado que nos deixou reféns da volatilidade internacional.
A história começa não nos gabinetes de Bruxelas, mas numa pequena freguesia do interior alentejano, onde um grupo de vizinhos decidiu que a conta da luz era o último fronteira onde aceitariam a resignação. Juntaram poupanças, estudaram regulamentos obscuros e, com a teimosia característica de quem conhece o valor do sol que incide sobre as suas terras, instalaram painéis fotovoltaicos partilhados. Hoje, trocam eletricidade entre si, armazenam o excedente e reduzem a fatura em mais de 40%. São microprodutores, consumidores e gestores da sua própria rede. Uma tríade que desmonta a lógica tradicional do setor.
Este movimento, porém, esbarra num labirinto burocrático digno de Kafka. Os procedimentos para legalizar uma comunidade energética podem demorar mais de 18 meses, envolvendo meia dúzia de entidades diferentes, cada uma com os seus formulários e interpretações da legislação. A Direção-Geral de Energia e Geologia tem vindo a simplificar processos, mas a verdade é que o entusiasmo dos cidadãos continua a ser travado pela lentidão administrativa. Enquanto isso, os grandes players do setor observam, com uma mistura de curiosidade e cautela, este fenómeno de democratização energética.
O potencial é colossal. Um estudo recente da APREN indica que as comunidades de energia poderão representar 15% da capacidade solar instalada em Portugal até 2030, atraindo investimentos na ordem dos 300 milhões de euros. Mas os números escondem a verdadeira transformação: esta é uma mudança de paradigma cultural. Deixamos de ser meros consumidores passivos para nos tornarmos agentes ativos no sistema energético. A energia deixa de ser uma commodity abstracta para se tornar um recurso local, gerido localmente.
Os benefícios vão muito além da poupança na fatura. Há projetos que reinvestem os lucros da venda de excedentes na eficiência energética de edifícios públicos, no apoio a famílias vulneráveis ou na criação de empregos técnicos locais. Noutros casos, as comunidades energética servem de âncora para revitalizar aldeias em risco de desertificação, atraindo jovens com competências técnicas e visão empreendedora. A energia renovável torna-se, assim, o motor de uma economia circular territorial.
No entanto, os desafios técnicos são reais. Como gerir eficientemente uma rede descentralizada? Como garantir a estabilidade do sistema quando a produção depende de fatores meteorológicos? As smart grids e as baterias de armazenamento são parte da resposta, mas a tecnologia avança mais rapidamente que a regulação. A Comissão Europeia pressiona os estados-membros a acelerarem a transição, mas em Portugal, a falta de técnicos especializados e a resistência de alguns municípios travam o ritmo da mudança.
O caso mais paradigmático talvez seja o de uma comunidade energética no distrito de Braga que uniu um lar de idosos, uma escola primária e vinte habitações familiares. Através de um sistema inteligente de gestão, o excedente produzido durante o dia nas habitações abastece as necessidades do lar e da escola, enquanto à noite a energia armazenada nas baterias comunitárias garante o funcionamento básico. Criaram um ecossistema resiliente, menos dependente da rede nacional e imune às flutuações de preço do mercado grossista.
O que começou como nicho de ecologistas e early adopters está a ganhar escala. Bancos começam a oferecer linhas de crédito específicas para projetos comunitários, seguradoras desenvolvem produtos adaptados e empresas de engenharia especializam-se neste novo mercado. Até as grandes utilities estão a reposicionar-se, oferecendo serviços de consultoria para quem quer criar a sua própria comunidade – um claro sinal de que o modelo está a ganhar legitimidade.
O futuro desenha-se plural: teremos o sistema nacional, as grandes centrais renováveis, mas também milhares de micro-redes autogeridas, interligadas mas autónomas. Uma arquitetura em rede, resiliente e democrática. A verdadeira independência energética de Portugal não se fará apenas com megaprojetos de hidrogénio verde ou parques eólicos offshore, mas com esta capilaridade de iniciativas locais que devolvem às pessoas o controlo sobre uma necessidade básica.
Enquanto os debates políticos se centram em subsídios e tarifários, nas ruas, vilas e bairros constrói-se silenciosamente uma nova relação com a energia. Mais colaborativa, mais inteligente, mais humana. A revolução não virá com um decreto-lei, mas com cada telhado que se transforma em central elétrica, cada vizinho que se torna sócio num projeto comum, cada comunidade que decide que a luz no fim do túnel pode, literalmente, ser produzida por si mesma.
O preço da luz e a revolução silenciosa das comunidades energéticas