A factura da luz chegou. Mais uma vez, o valor surpreende. Mas o que está por trás deste número que parece crescer sem controlo? A resposta não está apenas nas flutuações do mercado internacional ou nas políticas energéticas. Há uma história mais complexa, que se desenrola entre centrais a carvão que fecham portas, parques eólicos que giram ao sabor do vento, e uma dependência externa que nos deixa à mercê de caprichos geopolíticos.
Enquanto os consumidores apertam o cinto, as empresas do sector apresentam lucros recorde. Esta aparente contradição levanta questões incómodas. Será que o modelo de liberalização do mercado realmente beneficia o utilizador final? Ou criou um ecossistema onde uns poucos ganham à custa de muitos? As tarifas reguladas, outrora um porto seguro, transformaram-se num labirinto de letras pequenas e cláusulas obscuras.
A transição energética é a palavra de ordem. Fala-se em hidrogénio verde, em comunidades de energia, em autoconsumo. Mas no terreno, a realidade é outra. Os processos burocráticos para instalar painéis solares assemelham-se a uma odisseia kafkiana. As promessas de independência energética esbarram em regulamentos arcaicos e numa rede que não está preparada para a descentralização.
Enquanto isso, os fundos europeus chegam a conta-gotas. Os projectos ambiciosos anunciados com pompa e circunstância ficam pelo caminho, engolidos por atrasos na licenciamento e por conflitos de interesses. O Plano Nacional de Energia e Clima, esse documento repleto de metas nobres, parece mais um exercício de ficção do que um roteiro executável.
O gás natural, apresentado como ponte para um futuro mais limpo, revela-se uma armadilha. A dependência deste combustível fóssil deixou-nos vulneráveis às convulsões do Leste europeu. Cada crise internacional transforma-se num aumento directo na factura dos portugueses. A aposta no terminal de Sines, outrora celebrada como trunfo estratégico, hoje parece um passivo caríssimo.
As renováveis, essa bandeira que todos hasteiam, têm os seus paradoxos. Os leilões de capacidade atraem investidores estrangeiros com promessas de retornos garantidos, enquanto as comunidades locais pouco beneficiam. Os parques eólicos multiplicam-se, mas a electricidade que produzem nem sempre chega mais barata ao consumidor. O sol que brilha em Portugal alimenta contas bancárias noutras latitudes.
A eficiência energética permanece o parente pobre das políticas públicas. Os programas de apoio à reabilitação de edifícios são insuficientes e mal divulgados. Continuamos a aquecer casas com a eficácia de um pano molhado, a iluminar ruas como se a electricidade fosse infinita. O desperdício é monumental, mas invisível – não aparece na factura, embora esteja lá.
O futuro desenha-se entre a urgência climática e a justiça social. A descarbonização não pode significar a exclusão energética dos mais vulneráveis. As soluções existem: desde as comunidades energéticas que já florescem nalguns municípios, até às cooperativas que desafiam o oligopólio. Mas falta vontade política para lhes dar escala.
Enquanto discutimos megawatts e toneladas de CO2, há famílias que escolhem entre comer quente ou ter luz. Esta é a verdadeira crise energética – não a que faz manchetes, mas a que se vive com silêncio atrás de portas fechadas. A transição justa de que tanto se fala ainda é um conceito abstracto para quem vê a factura como uma ameaça mensal.
O caminho para a independência energética passa por repensar tudo: desde como produzimos até como consumimos. Exige coragem para enfrentar interesses instalados e imaginação para criar novos modelos. Enquanto isso, a factura chega, implacável, lembrando-nos que o preço da energia vai muito além do que pagamos ao fim do mês.
O preço da energia em Portugal: entre a factura que chega e a que não se vê