O paradoxo energético português: renováveis em alta mas preços a sufocar famílias

O paradoxo energético português: renováveis em alta mas preços a sufocar famílias
Enquanto Portugal bate recordes de produção renovável, com dias inteiros abastecidos apenas por sol, vento e água, as faturas da luz continuam a estrangular o orçamento das famílias. Esta contradição gritante esconde uma teia complexa de interesses, mercados opacos e uma transição energética que beneficia alguns enquanto penaliza muitos.

Nos últimos meses, os dados da REN revelam números históricos: em março, as renováveis representaram 91% do consumo elétrico nacional. Um feito extraordinário que coloca Portugal na vanguarda europeia. Mas esta conquista técnica não se reflete na carteira dos portugueses. Pelo contrário: o preço da eletricidade para consumidores domésticos subiu 23% no primeiro trimestre face ao ano anterior.

O cerne do problema reside no mecanismo de formação de preços no mercado ibérico MIBEL. A eletricidade é transacionada como se fosse toda produzida pelas centrais mais caras - normalmente as de gás natural - mesmo quando a maior parte vem de fontes praticamente gratuitas como o sol e o vento. Este sistema, herdado da era dos combustíveis fósseis, beneficia desproporcionalmente as grandes empresas produtoras.

Enquanto isso, o consumidor final paga a fatura de um modelo obsoleto. Maria Silva, reformada de 72 anos de Braga, conta-nos como desligou o aquecimento em pleno inverno: "Tenho medo de abrir a conta da luz. Vivemos com cobertores extra e panelas de água quente para lavar a loiça. Isto não é vida."

As grandes energéticas argumentam que os investimentos em renováveis são avultados e precisam de retorno. É verdade: a EDP investiu 3,4 mil milhões em renováveis só no último ano. Mas os lucros também bateram recordes - 1,2 mil milhões de euros em 2023, um aumento de 67% face ao ano anterior.

O governo tenta equilibrar a equação com medidas paliativas. O IVA a 0% na eletricidade, prolongado até final do ano, e o apoio extraordinário de 30 euros para famílias carenciadas ajudam, mas não resolvem o problema estrutural. "São pensos rápidos num paciente que precisa de cirurgia", comenta o economista energético Pedro Costa.

A verdadeira revolução poderá estar no autoconsumo. As comunidades energéticas e os painéis solares individuais crescem a um ritmo acelerado. Só no primeiro semestre de 2024, instalaram-se mais 120 MW em telhados portugueses - suficiente para abastecer 60 mil famílias. "Estamos a assistir a uma democratização da energia", entusiasma-se Ana Santos, da associação Zero.

Mas mesmo aqui há obstáculos. A burocracia para ligar à rede, os custos iniciais ainda elevados e a falta de informação travam muitos potenciais autoconsumidores. "Precisamos de um programa nacional que simplifique e incentive massivamente esta solução", defende o presidente da APREN, Pedro Amaral Jorge.

O hidrogénio verde surge como outra promessa. Sines prepara-se para se tornar um hub europeu, com investimentos previstos de 3 mil milhões de euros. Mas os críticos alertam: é uma tecnologia ainda imatura e cara, que pode desviar recursos de soluções mais imediatas como a eficiência energética.

Enquanto especialistas e políticos debatem modelos de mercado e tecnologias do futuro, milhões de portugueses continuam a escolher entre comer quente ou ter luz. A transição energética não pode ser apenas tecnicamente brilhante - tem de ser socialmente justa. Caso contrário, riskamos criar uma nova forma de pobreza: a energética.

O caminho para resolver este paradoxo passa por reformar profundamente o mercado elétrico, acelerar a descentralização da produção e garantir que os benefícios das renováveis chegam efetivamente a quem paga a conta. A energia limpa do século XXI não pode continuar refém de mentalidades do século XX.

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