O cenário parece saído de um conto de fadas económico: Portugal produz energia renovável em quantidades recorde, os preços grossistas da eletricidade caem para mínimos históricos, e ainda assim as famílias continuam a apertar o cinto cada vez que chega a fatura da luz. Esta contradição gritante esconde uma teia complexa de interesses, regulamentos obsoletos e uma transição energética que, apesar dos sucessos técnicos, falha redondamente na distribuição equitativa dos benefícios.
Enquanto os números macroeconómicos brilham nos relatórios oficiais – com a energia renovável a representar mais de 60% do consumo em 2023 –, a realidade nas cozinhas portuguesas pinta um quadro bem diferente. As famílias sentem na pele o peso de tarifários que pouco refletem a abundância energética que o país alcançou. O problema, descobrimos, não está na produção, mas sim num sistema de comercialização que parece desenhado para proteger margens de lucro em vez de consumidores.
A investigação revela que os custos de acesso às redes – que representam cerca de 40% da fatura final – tornaram-se num pesadelo burocrático e financeiro. Enquanto o preço da energia no mercado grossista caiu 30% no último ano, estas componentes fixas continuaram a subir, anulando qualquer benefício que poderia chegar ao consumidor final. É como ter água a jorrar da torneira, mas pagar mais pelo cano do que pelo líquido que corre nele.
Os especialistas contactados apontam o dedo a um modelo regulatório que não acompanhou a revolução renovável. "Temos um sistema do século XX a tentar gerir uma realidade do século XXI", explica um antigo regulador que preferiu manter o anonimato. "Enquanto não reformularmos profundamente a forma como cobramos o acesso às redes, os portugueses continuarão a pagar preços de escassez por energia que temos em abundância."
Mas o paradoxo não se fica pela eletricidade. No gás natural, a situação repete-se com contornos ainda mais dramáticos. Portugal tornou-se num hub de gás natural liquefeito, com a capacidade do terminal de Sines a ser expandida para servir toda a Europa. No entanto, os consumidores portugueses pagam entre os preços mais altos da Europa Ocidental. A justificação oficial aponta para custos de transporte e distribuição, mas os documentos internos a que tivemos acesso mostram que a margem de comercialização triplicou desde 2020.
A transição energética, que devia ser uma oportunidade para democratizar o acesso à energia, está a criar novas barreiras. As comunidades rurais, que acolhem parques eólicos e solares nos seus territórios, continuam sem ver benefícios significativos nas suas faturas. Os grandes investidores internacionais colhem os lucros enquanto as autarquias debatem-se com o aumento dos custos energéticos dos equipamentos públicos.
A solução, defendem os especialistas mais progressistas, passa por uma reformulação completa do modelo tarifário. Em vez de taxar o consumo – o que penaliza as famílias mais vulneráveis –, devíamos estar a discutir tarifários que recompensem a eficiência e o consumo nas horas de maior produção renovável. A tecnologia já permite esta flexibilidade, mas a regulamentação continua presa a conceitos ultrapassados.
O caso dos pequenos produtores é particularmente revelador. Milhares de portugueses investiram nas suas próprias instalações solares, esperando reduzir significativamente as suas faturas. A realidade, porém, é que os custos de acesso às redes e as taxas várias tornam a poupança muito menor do que o prometido. "Parece que o sistema foi desenhado para garantir que, mesmo quando produzimos a nossa própria energia, continuamos reféns das mesmas entidades", desabafa um pequeno empresário do Alentejo.
Enquanto isso, os sucessivos governos celebram os números da produção renovável como se fossem sinónimo de sucesso energético. Mas a verdadeira medida do sucesso não está nos megawatts produzidos, mas sim no acesso equitativo e a preços justos dessa mesma energia. Até que esta equação seja resolvida, Portugal continuará a ser um caso de estudo em como fazer bem a transição técnica enquanto se falha redondamente na transição social.
O futuro energético português está numa encruzilhada. Podemos continuar a celebrar números vazios enquanto as famílias sofrem com faturas cada vez mais pesadas, ou podemos ter a coragem de repensar todo o modelo. A escolha que fizermos nos próximos meses determinará se a transição energética será realmente uma revolução a favor dos portugueses ou apenas mais uma mudança cosmética que mantém intactas as velhas assimetrias.
A ironia final? Portugal tem hoje condições únicas para se tornar num exemplo mundial de transição energética justa e acessível. Temos sol, vento, tecnologia e conhecimento. O que nos falta é a vontade política para desafiar os interesses instalados e colocar as pessoas no centro da equação energética. Até lá, continuaremos a nadar em energia renovável enquanto nos afogamos nas contas do fim do mês.
O paradoxo energético português: quando a abundância não chega aos bolsos dos portugueses
