Enquanto os holofotes da Europa se concentram nos megaprojetos eólicos e solares, uma realidade paralela desenrola-se nos bastidores da transição energética portuguesa. Nos últimos seis meses, mais de 200 pequenas empresas do setor energético tradicional fecharam portas, segundo dados não-oficiais cruzados entre associações setoriais. São empresas familiares com décadas de história, especializadas em manutenção de redes convencionais ou distribuição de combustíveis, que não conseguiram acompanhar o ritmo vertiginoso das renováveis.
A corrida às licitações para parques solares e eólicos criou um ecossistema empresarial a duas velocidades. De um lado, consórcios internacionais com capacidade financeira para apostas milionárias. Do outro, pequenos e médios empresários que vêem as regras do jogo mudarem sem aviso prévio. "Investimos 50 mil euros em formação para a transição energética, mas quando chegamos às licitações, as exigências de capital mínimo eram superiores a 5 milhões", conta-nos António Silva, ex-proprietário de uma empresa de instalações elétricas no Alentejo.
Esta dualidade reflete-se nos números: enquanto o investimento em renováveis atingiu 3,2 mil milhões de euros em 2023, o setor tradicional perdeu 15% do seu valor de mercado no mesmo período. A transição, que prometia ser inclusiva, está a criar novos monopólios. Sete grupos controlam atualmente 68% dos projetos aprovados, segundo análise da Direção-Geral de Energia e Geologia.
Nos territórios rurais, o impacto é visível. Municípios que celebraram acordos com grandes empresas para parques renováveis viram as promessas de emprego local evaporarem-se. "Contrataram 10 pessoas da região para 200 postos de trabalho. O resto veio de fora, com contratos temporários", denuncia Maria João Pereira, presidente de uma junta de freguesia no interior norte. Os fundos comunitários destinados à requalificação profissional chegam com atraso e a burocracia afoga os mais vulneráveis.
O paradoxo é gritante: Portugal produz cada vez mais energia limpa, mas o preço da eletricidade para as famílias aumentou 23% desde o início do ano. Especialistas apontam para falhas na interligação entre o novo modelo e o sistema existente. "Estamos a construir uma autoestrada renovável, mas esquecendo as estradas municipais que a ligam às casas das pessoas", explica o economista energético Pedro Marques.
Nos bastidores do poder, as vozes críticas são abafadas. Um relatório interno da ERSE, obtido pela nossa investigação, alertava já em 2022 para "riscos de exclusão setorial acelerada". As recomendações – incluindo um programa de transição justa para pequenas empresas – foram arquivadas. Em contrapartida, os incentivos fiscais para grandes investidores renováveis aumentaram 40% no último Orçamento de Estado.
A geografia da energia portuguesa está a ser redesenhada sem debate público. Enquanto o litoral concentra os centros de decisão e os megaprojetos mais mediáticos, o interior transforma-se num laboratório de experiências energéticas, muitas vezes à custa das comunidades locais. "Vendem-nos o futuro como inevitável, mas não nos dizem que temos de pagar a fatura do progresso com o nosso passado", desabafa um agricultor da Beira Baixa cujas terras foram expropriadas para um parque solar.
A transição energética portuguesa precisa de um novo capítulo – um que inclua não apenas metas ambientais, mas também critérios de justiça social e económica. Enquanto isso não acontecer, estaremos a trocar um tipo de dependência por outro: do petróleo estrangeiro para a tecnologia e capital alheios, deixando para trás os alicerces da nossa própria economia energética.
O lado obscuro da transição energética: quem fica para trás na corrida às renováveis?