Enquanto os holofotes mediáticos se concentram nas megacentrais solares e nos parques eólicos offshore, uma realidade mais sombria desenrola-se longe das câmaras. Nas regiões interiores de Portugal, onde o sol abrasador e o vento constante deviam ser bênçãos, transformaram-se em maldições para quem lá vive. A corrida às renováveis criou uma nova forma de colonialismo energético, onde as multinacionais chegam com promessas de desenvolvimento, mas deixam apenas cicatrizes na paisagem e nas comunidades.
Na Beira Interior, Maria, agricultora de 68 anos, mostra-nos o que resta da sua horta familiar depois da instalação de painéis solares numa propriedade vizinha. "Diziam que era progresso, que íamos todos beneficiar. Mas a sombra dos painéis secou as minhas culturas, e a poeira das obras contaminou o solo. Agora, a água do meu poço tem um sabor metálico." Como Maria, centenas de pequenos proprietários enfrentam desvalorizações brutais das suas terras, sem qualquer compensação adequada. Os contratos, redigidos em linguagem jurídica impenetrável, escondem cláusulas que transformam arrendamentos de 25 anos em praticamente doações permanentes.
O fenómeno não se limita ao solar. No Alto Minho, os parques eólicos multiplicam-se como cogumelos após a chuva, mas os benefícios prometidos nunca chegam. "Disseram-nos que haveria emprego para os jovens, que as escolas teriam melhoramentos, que as estradas seriam arranjadas", conta António, presidente de uma junta de freguesia que preferiu não se identificar. "Passados três anos, temos apenas o barulho constante das pás, estradas destruídas pelos camiões pesados, e os mesmos empregos de sempre - quando há."
A ironia é cruel: as regiões que produzem energia limpa para Lisboa e Porto continuam a ter das tarifas mais altas do país. Enquanto os dados oficiais celebram a percentagem de renováveis na rede nacional, ninguém fala do custo humano desta transição. As comunidades rurais, já envelhecidas e despovoadas, veem-se agora confrontadas com uma nova ameaça à sua sobrevivência. Os grandes fundos de investimento internacionais compram terrenos a preços irrisórios, aproveitando-se da falta de informação e do desespero dos proprietários mais idosos.
Mas a resistência organiza-se. Em Trás-os-Montes, um grupo de cidadãos criou a primeira cooperativa energética comunitária do interior, contornando os grandes players. "Percebemos que, se não tomássemos as rédeas do nosso destino energético, seríamos apenas espectadores do nosso próprio empobrecimento", explica Sofia Mendes, engenheira ambiental que deixou Lisboa para liderar o projeto. A cooperativa já tem 120 famílias associadas e planeia instalar painéis solares em telhados municipais e terrenos comunais, garantindo que os lucros revertem para a comunidade.
Esta abordagem alternativa revela o paradoxo central da transição energética portuguesa: enquanto o governo celebra recordes de produção renovável, falha em criar um modelo que distribua os benefícios de forma justa. Os incentivos fiscais beneficiam principalmente as grandes corporações, enquanto os cidadãos comuns pagam tarifas cada vez mais altas. A tão falada "democratização da energia" parece reservada apenas para quem tem capital para investir.
O caso mais flagrante desta desigualdade encontra-se no Alentejo, onde uma multinacional espanhola construiu o maior parque solar da Europa. Os números são impressionantes: 1.200 hectares, capacidade para abastecer 430.000 lares. Mas os números que não aparecem nos comunicados de imprensa são mais reveladores: apenas 12 empregos locais permanentes, contra os 800 prometidos inicialmente; uma compensação aos municípios que não chega a 1% dos lucros anuais; e um aumento de 15% no preço da água devido ao consumo massivo para limpeza dos painéis.
A solução, defendem os especialistas mais críticos, passa por uma revisão profunda do modelo de licenciamento. "Precisamos de critérios que vão além da mera produção de energia", argumenta o professor Carlos Silva, especialista em políticas energéticas. "Devia ser obrigatório um estudo de impacto comunitário, garantias de emprego local, partilha equitativa dos lucros, e planos de reflorestação compensatória. Sem isto, estamos a substituir um problema ambiental por um problema social."
Enquanto Lisboa se prepara para receber mais uma cimeira sobre energias verdes, com os habituais discursos triunfalistas, nas aldeias do interior a realidade é bem diferente. A transição energética, na sua forma atual, corre o risco de criar novas dependências e desigualdades, apenas mudando os atores. O desafio não é técnico - Portugal já provou que sabe produzir energia renovável em quantidade. O desafio é político e ético: construir um sistema que não sacrifique algumas comunidades em nome do progresso de outras.
O futuro energético do país não se decide apenas em ministérios e salas de reuniões corporativas. Decide-se também nas assembleias municipais, nas cooperativas locais, e na capacidade das comunidades de reclamarem o que é seu por direito: não apenas energia limpa, mas energia justa.
O lado negro da transição energética: como os grandes projetos estão a falhar as comunidades locais