Nas salas climatizadas de Bruxelas, fala-se de hidrogénio verde como o novo petróleo. Em Lisboa, os gabinetes ministeriais ecoam com promessas de milhares de milhões em investimentos e uma revolução energética que colocaria Portugal na vanguarda europeia. Mas entre a retórica política e a realidade no terreno, abre-se um abismo que cheira a oportunidade perdida – e a alguns bolsos bem recheados.
Enquanto a Alemanha assina acordos bilaterais com o Canadá e o Chile para importar hidrogénio verde, e a Espanha avança com projetos industriais de larga escala, Portugal continua preso numa teia de burocracia, estudos de impacto ambiental intermináveis e uma falta gritante de visão estratégica. O projeto Sines, anunciado com pompa e circunstância como a maior unidade de produção de hidrogénio verde da Europa, ainda não saiu do papel. Os prazos sucessivamente adiados contam uma história diferente daquela que o governo gosta de vender.
O problema começa na origem: a produção de hidrogénio verde requer eletricidade renovável em quantidades industriais. Portugal tem sol e vento de sobra, mas a rede elétrica nacional é um colosso com pés de barro. As linhas de transporte estão saturadas, os processos de licenciamento para novos parques eólicos e solares arrastam-se durante anos, e os investidores estrangeiros começam a olhar para outros horizontes. Enquanto isso, os nossos vizinhos espanhóis já têm em funcionamento mais de 50 projetos de hidrogénio, alguns deles com produção comercial.
Mas a tragédia portuguesa não se fica pela incompetência administrativa. Há um jogo de interesses que cheira a petróleo velho. As mesmas empresas que durante décadas lucraram com os combustíveis fósseis são agora as que se apresentam como paladinas da transição energética. Mudam a pintura, mas a engrenagem é a mesma. Os grandes grupos energéticos nacionais posicionam-se estrategicamente nos consórcios de hidrogénio, garantindo que a futura revolução verde não lhes escape das mãos – nem dos lucros.
O hidrogénio verde prometia descentralização, democratização energética e oportunidades para pequenos e médios empresários. Na prática, o que vemos é a concentração do poder nas mãos de quem já o detinha. Os projetos comunitários, as cooperativas energéticas, as iniciativas locais – tudo isso fica à margem do grande negócio. Enquanto os holofotes estão virados para Sines, dezenas de projetos regionais com potencial real morrem à fome de financiamento e apoio político.
A ironia mais cruel desta história está nos números: Portugal importa atualmente 75% da energia que consome, pagando preços exorbitantes que estrangulam a economia. O hidrogénio verde era a promessa de independência energética, de soberania nacional, de uma fatura mais leve para famílias e empresas. Em vez disso, arriscamo-nos a trocar a dependência do gás russo pela dependência da tecnologia alemã e do capital estrangeiro. Produziremos o hidrogénio, mas os lucros e o controlo tecnológico seguirão para outros países.
Há uma luz ao fundo do túnel, mas é fraca e intermitente como uma lâmpada poupada. Algumas startups portuguesas estão a desenvolver tecnologias inovadoras na área do hidrogénio, desde novos métodos de produção até aplicações industriais específicas. Estas empresas, muitas delas nascidas em universidades portuguesas, representam o verdadeiro potencial nacional. Mas lutam contra ventos e marés: falta de capital de risco, burocracia asfixiante e uma cultura empresarial que prefere o seguro ao inovador.
O relógio não para. A União Europeia avança com o seu plano REPowerEU, injetando milhares de milhões em projetos de hidrogénio por todo o continente. Os fundos estão lá, as oportunidades também. O que falta a Portugal não é sol, nem vento, nem mesmo dinheiro. Falta coragem para romper com velhos hábitos, para desafiar os interesses instalados, para apostar verdadeiramente na inovação. Falta, em suma, a vontade política de fazer da transição energética mais do que um slogan de campanha.
Enquanto escrevo estas linhas, o governo prepara-se para anunciar mais um plano estratégico para o hidrogénio verde. Será o quinto em três anos. Desta vez, prometem, será diferente. Os mesmos atores, os mesmos discursos, os mesmos interesses. A pergunta que fica no ar é simples: quando é que Portugal vai acordar para a realidade? A corrida do hidrogénio verde já começou, e estamos a ficar para trás. Não por falta de recursos, mas por excesso de ilusões.
O jogo sujo do hidrogénio verde: como Portugal está a perder a corrida energética