A revolução silenciosa: como a energia solar está a mudar Portugal sem que ninguém dê por isso

A revolução silenciosa: como a energia solar está a mudar Portugal sem que ninguém dê por isso
Enquanto os olhos do país estão voltados para as grandes centrais eólicas e para os debates sobre o nuclear, uma revolução silenciosa está a acontecer nos telhados portugueses. De norte a sul, de Bragança a Faro, os painéis solares multiplicam-se como cogumelos depois da chuva, transformando não apenas a paisagem urbana, mas também a forma como os portugueses se relacionam com a energia.

Os números são eloquentes: segundo dados da Direção-Geral de Energia e Geologia, a capacidade instalada de energia solar fotovoltaica em Portugal cresceu 42% apenas no último ano. Mas estes dados oficiais contam apenas parte da história. O que realmente está a acontecer é uma mudança cultural profunda, uma espécie de "democratização energética" que coloca o poder de produção nas mãos dos cidadãos comuns.

Na pequena aldeia de São Pedro do Sul, Maria do Céu, 68 anos, mostra orgulhosamente a sua fatura da eletricidade: 3,45 euros. "Parece brincadeira", diz, enquanto aponta para os 12 painéis no telhado da sua casa de granito. "Durante anos paguei 60, 70 euros por mês. Agora, quando o sol brilha, não só não pago como ainda vendo o que sobra."

Esta microprodução, que há uma década era vista como excentricidade de "ecologistas radicais", tornou-se numa realidade económica irresistível. O preço dos painéis caiu 89% na última década, enquanto a eficiência aumentou 25%. O retorno do investimento, que antes demorava 10 a 12 anos, reduziu-se agora para 4 a 6 anos, tornando a decisão quase matemática.

Mas há um lado menos visível desta revolução: a transformação das redes elétricas. As distribuidoras enfrentam o desafio de gerir milhares de pequenas centrais que injetam energia de forma intermitente na rede. "É como tentar encher um balde com centenas de pequenas torneiras que abrem e fecham ao sabor das nuvens", explica um engenheiro da E-Redes que prefere não se identificar. "A rede foi desenhada para fluxos unidirecionais, das grandes centrais para os consumidores. Agora temos fluxos bidirecionais imprevisíveis."

Esta complexidade técnica esconde uma ironia histórica: Portugal, que durante décadas importou mais de 70% da sua energia, está a tornar-se não apenas autossuficiente, mas potencialmente exportador. Os especialistas calculam que, mantido o ritmo atual de instalação, em 2030 o país poderá produzir 150% das suas necessidades em dias de sol intenso.

No entanto, nem tudo são rosas neste jardim solar. As comunidades mais pobres e os inquilinos de prédios urbanos ficam frequentemente de fora desta revolução. "Há um risco real de criarmos duas classes energéticas: os proprietários com telhado próprio e todos os outros", alerta Sofia Martins, investigadora do Instituto de Ciências Sociais. "A transição energética só será justa se incluir toda a sociedade."

As cooperativas de energia emergem como resposta a este desafio. Em Coimbra, a Coopérnico já reúne mais de 2.000 membros que investem coletivamente em parques solares e partilham os benefícios. "É a energia como bem comum, não como commodity", defende Miguel Alves, um dos fundadores. "Quando as pessoas se juntam, conseguem negociar melhores condições e garantir que os lucros ficam na comunidade."

O setor empresarial também não ficou indiferente. Das grandes superfícies comerciais às pequenas oficinas, os negócios descobriram que os painéis solares são não apenas uma despesa ambientalmente correta, mas um investimento financeiramente inteligente. O grupo Sonae, por exemplo, já instalou mais de 50.000 painéis nos telhados dos seus centros comerciais, produzindo energia equivalente ao consumo de 15.000 famílias.

Mas o verdadeiro salto qualitativo está a acontecer nos sistemas de armazenamento. As baterias domésticas, que há cinco anos eram artigos de luxo, começam a tornar-se acessíveis. Combinadas com painéis solares, permitem que as famílias consumam a sua própria energia mesmo à noite, reduzindo a dependência da rede. "É a autonomia energética ao nível do lar", entusiasma-se Carlos Silva, técnico de uma empresa de instalação no Porto. "As pessoas sentem que recuperam o controlo sobre uma parte fundamental das suas vidas."

Esta mudança tem implicações que vão muito além da conta da luz. Está a criar novos empregos - Portugal já tem mais de 15.000 técnicos certificados em energias renováveis -, a reduzir a fatura das importações de combustíveis fósseis e a tornar o país menos vulnerável às crises geopolíticas que afetam os mercados energéticos globais.

O que começou como uma alternativa ecológica transformou-se numa estratégia económica de soberania nacional. E tudo aconteceu sem grandes anúncios, sem campanhas publicitárias milionárias, quase por osmose social. Talvez seja essa a característica mais notável desta revolução: a sua naturalidade. Os portugueses não adotaram a energia solar porque foram convencidos por discursos ambientalistas, mas porque fizeram as contas e viram que compensava.

Enquanto a Europa debate metas e regulamentos, Portugal vive na prática a transição energética. Nos telhados, nas fachadas, até nos parques de estacionamento, os painéis solares contam uma história de mudança silenciosa mas profunda. Uma história que está a reescrever não apenas o futuro energético do país, mas também a relação dos portugueses com o sol que sempre os acompanhou.

Subscreva gratuitamente

Terá acesso a conteúdo exclusivo, como descontos e promoções especiais do conteúdo que escolher:

Tags

  • Energia Solar
  • Transição Energética
  • autoconsumo
  • renováveis em Portugal
  • democratização energética