O preço do silêncio: como os fundos de crédito estão a reescrever as regras da dívida portuguesa

O preço do silêncio: como os fundos de crédito estão a reescrever as regras da dívida portuguesa
Há uma revolução silenciosa a acontecer nos bastidores do sistema financeiro português, e poucos estão a prestar atenção. Enquanto os olhos do país se voltam para os índices da bolsa ou as taxas de juro do BCE, um novo ecossistema de dívida está a nascer nas sombras. Não são os bancos tradicionais a liderar esta transformação, mas sim os fundos de crédito – entidades discretas que estão a redesenhar o mapa do financiamento empresarial em Portugal.

Estes fundos, muitos deles com sede em paraísos fiscais ou capitais europeias, estão a preencher um vazio deixado pela banca tradicional após a crise. Onde os bancos recuaram por medo do risco, os fundos de crédito avançaram com apetite voraz. Empresas de média dimensão, PMEs com crescimento acelerado, até projetos imobiliários considerados demasiado arriscados pelos bancos – todos encontraram nestes novos atores uma fonte de financiamento alternativa. Mas a que preço?

Os contratos que estes fundos oferecem são obras de arte jurídica, repletas de cláusulas que dariam pesadelos a qualquer CFO experiente. Taxas de juro que parecem modestas à primeira vista escondem comissões de estruturação, penalizações por pré-pagamento, e mecanismos de indexação que podem transformar dívida manejável em bola de neve imparável. Há casos documentados de empresas que viram os seus custos financeiros duplicar em menos de dois anos, sem que o negócio central tenha sofrido qualquer revés.

O mais intrigante é que esta expansão acontece num vácuo regulatório quase perfeito. Enquanto os bancos são esmagados por requisitos de capital da Basileia III e supervisão apertada do Banco de Portugal, os fundos de crédito operam num limbo legal. Muitos não estão sujeitos às mesmas regras de transparência, não têm obrigação de reportar à CMVM com a mesma frequência, e as suas operações passam frequentemente despercebidas às autoridades. É como assistir a um jogo de futebol onde uma equipa joga com as mãos atadas e a outra pode usar as mãos sem qualquer penalização.

Os especialistas começam agora a alertar para o que chamam de 'bolha do crédito privado'. Os volumes são impressionantes: segundo estimativas conservadoras, os fundos de crédito já detêm mais de 15 mil milhões de euros em exposição a empresas portuguesas. Este número cresce a um ritmo de 20% ao ano, alimentado por capital estrangeiro em busca de rendibilidades que já não encontra nos mercados tradicionais. O problema é que grande parte desta dívida está concentrada em setores cíclicos – turismo, construção, restauração – precisamente os mais vulneráveis a uma desaceleração económica.

Há histórias que merecem ser contadas. Como a da empresa familiar do norte que, desesperada por capital de crescimento após ser rejeitada por três bancos, aceitou um empréstimo de um fundo de crédito com sede em Londres. Dois anos depois, as cláusulas de 'marca d'água' no contrato permitiram ao fundo tomar controlo da empresa quando esta falhou um único pagamento durante a pandemia. A família perdeu não apenas o negócio construído ao longo de décadas, mas viu-se obrigada a pagar uma multa de rescisão equivalente a 30% do valor total do empréstimo.

Ou o caso do promotor imobiliário que celebrou com um fundo alemão o que parecia ser a solução perfeita para financiar um projeto de luxo no Algarve. O que não estava no contrato – mas que foi 'interpretado' pelos advogados do fundo quando as vendas desaceleraram – era que a garantia pessoal do promotor cobria não apenas o empréstimo específico, mas todos os ativos da sua holding familiar. Perdeu tudo num processo que durou menos de seis meses.

Estes não são incidentes isolados. Investigação junto de advogados especializados em insolvências revela um padrão preocupante: os fundos de crédito estão a tornar-se os principais credores em processos de recuperação de empresas, muitas vezes superando os bancos tradicionais. A sua abordagem é diferente – menos interessada em reestruturações negociadas, mais focada em execuções rápidas que maximizem o retorno do investimento.

O Banco de Portugal começa a esfregar os olhos. Num relatório recente, o supervisor admitiu pela primeira vez que 'a expansão do crédito não bancário merece monitorização apertada'. Mas as ferramentas à sua disposição são limitadas. A maioria destes fundos não está registada em Portugal, opera sob legislação estrangeira, e as suas transações são muitas vezes estruturadas através de veículos offshore. É um jogo de gato e rato onde o rato conhece todos os buracos da parede.

O que está em jogo vai além do destino de empresas individuais. O crescimento desregulado deste mercado paralelo de crédito está a criar distorções perigosas no sistema financeiro nacional. Empresas que deviam estar a ser desalavancadas após anos de excesso de dívida encontram nestes fundos uma fonte fácil de financiamento. O risco não desaparece – apenas se transfere para investidores institucionais (muitas vezes fundos de pensões europeus) que pouco sabem sobre a realidade empresarial portuguesa.

Há quem defenda que estes fundos desempenham um papel necessário, preenchendo lacunas de financiamento que a banca tradicional abandonou. E há verdade nisto – muitas empresas viáveis teriam fechado sem este acesso alternativo ao crédito. Mas a falta de equilíbrio é alarmante. Enquanto em países como a França ou a Alemanha existem regras específicas para o crédito privado, em Portugal reina a lei do mais forte.

O silêncio é talvez o aspeto mais perturbador. Poucas empresas que negociam com estes fundos estão dispostas a falar abertamente – receiam represálias, quebra de confiança no mercado, ou simplesmente o embaraço de admitir que caíram numa armadilha financeira complexa. Os próprios fundos operam com discrição militar, raramente aparecendo na comunicação social, preferindo influenciar nos corredores do poder em vez de nos debates públicos.

O que se segue pode determinar o futuro da economia portuguesa para a próxima década. Ou aprendemos a regular este novo mundo do crédito, criando regras que protejam empresas sem estrangular o acesso ao financiamento, ou arriscamo-nos a uma crise de dívida corporativa que fará a dos bancos parecer um exercício de simulação. O relógio não para – enquanto escrevo estas linhas, mais um contrato está a ser assinado, mais uma empresa está a trocar liberdade por liquidez, mais um pedaço do tecido empresarial português passa para mãos que nunca verão a fachada do seu escritório.

A pergunta que fica no ar, pairando sobre cada reunião de administração onde se discute financiamento, é simples: estamos a construir o futuro ou a hipotecá-lo? A resposta pode estar escondida nas letras pequenas de contratos que poucos se dão ao trabalho de ler até à última página.

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