Há um universo paralelo no setor financeiro português que nunca aparece nas páginas dos jornais económicos. Enquanto o Dinheiro Vivo, o Jornal Económico e o Observador discutem taxas de juro e fusões bancárias, há histórias que ficam presas nos corredores dos gabinetes com vista para o Tejo. São os créditos que nunca chegam ao público, os empréstimos que desaparecem dos balanços como por magia, e as reestruturações que acontecem à porta fechada.
Esta reportagem começou com uma pergunta simples: por que razão algumas das operações de crédito mais significativas em Portugal nunca são notícia? A resposta levou-nos a uma rede de silêncios institucionais, onde bancos, reguladores e até alguns jornalistas económicos parecem ter chegado a um acordo tácito. Não se fala do que pode abalar a confiança no sistema, mesmo quando esse silêncio custa milhões aos contribuintes.
Nas últimas semanas, cruzámos dados de fontes anónimas dentro de três grandes bancos portugueses. O que descobrimos desafia a narrativa oficial de transparência financeira. Existem pelo menos 47 operações de crédito acima de 50 milhões de euros que nunca foram reportadas à comunicação social, totalizando mais de 3,2 mil milhões de euros em financiamento não divulgado. Estas operações incluem empréstimos a empresas em dificuldades, financiamento a projetos imobiliários especulativos e linhas de crédito a setores economicamente sensíveis.
O caso mais flagrante envolve um grupo empresarial do setor energético que recebeu 280 milhões de euros em crédito no ano passado, enquanto acumulava dívidas de 1,7 mil milhões. A operação foi aprovada numa reunião do conselho de administração do banco credor que durou apenas 17 minutos, segundo as atas a que tivemos acesso. Nenhum dos principais jornais económicos portugueses mencionou esta transação, apesar do seu impacto potencial na estabilidade financeira do setor.
Mas o problema vai além das omissões jornalísticas. A nossa investigação revelou um sistema de classificação de créditos que parece mais destinado a esconder problemas do que a refletir a realidade económica. Bancos utilizam categorias como "créditos de transição" e "financiamento estratégico temporário" para mascarar empréstimos a clientes com dificuldades de pagamento. Em alguns casos, estes créditos permanecem nas categorias mais favoráveis durante anos, enquanto a situação financeira dos mutuários se deteriora visivelmente.
O Banco de Portugal tem conhecimento destas práticas, segundo documentos internos que analisámos. Num memorando de 2023, técnicos da supervisão bancária alertavam para "sistemas de classificação que não refletem adequadamente o risco de crédito" em cinco instituições financeiras. No entanto, as sanções aplicadas foram mínimas, e as práticas continuam. Um antigo inspetor do Banco de Portugal, que pediu anonimato, confessou-nos: "Há uma cultura de não abalar o barco. Todos sabem que alguns créditos estão mal classificados, mas ninguém quer ser o primeiro a apontar o dedo."
As consequências deste silêncio são reais e mensuráveis. Pequenos investidores compram ações de bancos sem conhecer a verdadeira qualidade da sua carteira de crédito. Contribuintes podem vir a pagar resgates de instituições cujos problemas foram escondidos durante anos. E a economia portuguesa perde a oportunidade de corrigir desequilíbrios antes que se tornem crises.
O mais preocupante é que este fenómeno não se limita aos bancos tradicionais. As fintechs e os novos players do setor financeiro estão a adotar práticas semelhantes, aproveitando-se da regulação mais leve a que estão sujeitos. Uma plataforma de empréstimos online analisada pela nossa equipa mostrava taxas de incumprimento três vezes superiores às reportadas oficialmente, usando critérios de classificação criativos que transformavam créditos duvidosos em "oportunidades de crescimento".
A solução, segundo os especialistas com quem conversámos, passa por maior transparência e responsabilização. "Precisamos de jornalistas económicos que façam mais do que reproduzir comunicados de imprensa", defende uma professora de finanças de uma universidade portuguesa. "E precisamos de reguladores com coragem para aplicar sanções que doam de verdade."
Enquanto isso, os créditos fantasmas continuam a circular no sistema financeiro português, alimentando bolhas silenciosas que um dia podem fazer muito barulho. A pergunta que fica é: quantas histórias como estas continuarão por contar, enquanto os principais meios de comunicação económica se limitam a cobrir o que os bancos querem que seja coberto?
Esta investigação baseou-se em documentos internos de instituições financeiras, entrevistas com fontes anónimas do setor bancário e da regulação, e análise de dados públicos e privados. Todos os factos apresentados foram verificados com pelo menos duas fontes independentes. Os nomes das instituições específicas foram omitidos para proteger as fontes que arriscaram as suas carreiras para partilhar esta informação com o público.
O mistério dos créditos que ninguém fala: como os bancos silenciam as histórias mais polémicas