O lado oculto do crédito: histórias que os bancos não contam

O lado oculto do crédito: histórias que os bancos não contam
Há um mundo paralelo que existe nas entrelinhas dos contratos de crédito, um universo de pequenas letras que poucos leem e menos ainda compreendem. Enquanto os bancos apresentam números impressionantes de aprovações e taxas competitivas, há histórias humanas que se perdem nas estatísticas. Esta é uma investigação sobre o que realmente acontece quando as famílias portuguesas assinam na linha pontilhada.

Na periferia de Lisboa, Maria, de 62 anos, mostra-me uma pasta com documentos que já não consegue decifrar. O crédito pessoal que contraiu há três anos para ajudar o filho com o negócio transformou-se numa bola de neve que não para de crescer. "Pedi 5.000 euros, já paguei quase 8.000 e ainda devo 3.500", conta, com os olhos marejados. A sua história não é única - é o retrato de milhares de portugueses que navegam num mar de juros e comissões sem compreender as regras do jogo.

Os bancos, por seu lado, defendem-se com a transparência dos contratos. "Todas as condições estão claramente especificadas", argumenta um gestor de um grande banco português que preferiu manter o anonimato. Mas será que a clareza técnica equivale a compreensão real? Um estudo recente da DECO revela que 68% dos portugueses não compreendem totalmente os termos dos créditos que contraem, especialmente quando se trata de produtos mais complexos como os créditos consolidados ou os empréstimos com seguros associados.

A verdade é que o sistema financeiro português vive uma dualidade curiosa. Por um lado, os indicadores macroeconómicos mostram uma recuperação consistente, com taxas de juro historicamente baixas e níveis de incumprimento controlados. Por outro, nas cozinhas das casas portuguesas, a realidade pinta-se com cores mais sombrias. As famílias endividam-se para manter o padrão de vida, para educar os filhos, para simplesmente sobreviver num país onde os salários não acompanham o custo de vida.

A tecnologia prometia ser a grande aliada do consumidor, mas criou novos desafios. As fintechs e os bancos digitais oferecem créditos com aprovação em minutos, mas será que essa velocidade não sacrifica a reflexão necessária? "Recebo dezenas de mensagens por dia com ofertas de crédito", conta João, empresário de 45 anos. "É tentador, mas perigoso. Às vezes sinto que estou num supermercado onde tudo está em promoção."

O crédito ao consumo em Portugal cresceu 12% no último ano, segundo dados do Banco de Portugal. Este aumento, embora sinal de confiança na economia, esconde uma realidade preocupante: muitas famílias estão a usar crédito para cobrir despesas correntes, não para investir no futuro. É o chamado "crédito de sobrevivência", um fenómeno que preocupa os reguladores.

Mas há esperança no horizonte. Novas ferramentas de educação financeira estão a surgir, e os consumidores estão cada vez mais informados. Plataformas como a do Banco de Portugal permitem comparar ofertas e compreender os custos reais do crédito. A literacia financeira, embora ainda insuficiente, começa a fazer parte do vocabulário das famílias portuguesas.

O que falta, talvez, seja uma abordagem mais humana por parte das instituições financeiras. Em vez de vender produtos, deveriam oferecer soluções. Em vez de focar-se nas taxas, deveriam preocupar-se com a sustentabilidade do endividamento. Afinal, um cliente que paga as suas dívidas é melhor para o banco do que um que entra em incumprimento.

No final da tarde, enquanto me despeço de Maria, ela pergunta-me: "Acha que um dia vou conseguir pagar isto?" A sua pergunta ecoa nas estatísticas, nos relatórios trimestrais dos bancos, nas reuniões do Banco Central Europeu. A resposta, infelizmente, não é simples. Depende de tantos fatores - da economia, do emprego, da saúde, da sorte.

O crédito não é bom nem mau por si só. É uma ferramenta, como um martelo: pode construir uma casa ou partir um dedo. O que importa é quem a maneja e com que conhecimento. Enquanto sociedade, temos a responsabilidade de garantir que as Marias deste país tenham as ferramentas e o conhecimento para usar o crédito a seu favor, não contra si.

Esta investigação revela que precisamos de mais do que regulamentação - precisamos de empatia, de educação e, acima de tudo, de honestidade sobre os riscos e oportunidades do crédito. As histórias como a de Maria merecem ser contadas, não escondidas nas pequenas letras dos contratos bancários.

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  • crédito ao consumo
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