O lado obscuro dos créditos rápidos: como as fintechs estão a reescrever as regras do endividamento em Portugal

O lado obscuro dos créditos rápidos: como as fintechs estão a reescrever as regras do endividamento em Portugal
Nas ruas de Lisboa, os anúncios digitais cintilam com promessas sedutoras: 'Dinheiro em 15 minutos', 'Sem burocracias', 'Aprovação garantida'. São as novas fachadas digitais das empresas de crédito rápido, que nos últimos dois anos invadiram o mercado português com a força de um tsunami financeiro. Mas por trás das interfaces amigáveis e dos algoritmos inteligentes, esconde-se uma realidade que poucos querem discutir: estamos a normalizar o endividamento como solução imediata para problemas estruturais.

A investigação do Jornal de Negócios revelou que o volume de crédito pessoal concedido por fintechs cresceu 187% em 2023, um número que faz tremer os alicerces do sistema financeiro tradicional. Enquanto os bancos continuam a exigir fiadores e a analisar históricos de crédito com lupa, estas novas empresas oferecem empréstimos baseados em dados comportamentais - desde os seus hábitos de compra online até ao tempo que passa em cada aplicação no telemóvel. É a monetização da nossa vulnerabilidade digital.

O Observador documentou casos perturbadores: famílias que começaram com um empréstimo de 500 euros para reparar o carro e, seis meses depois, estavam enroladas em cinco créditos diferentes, totalizando dívidas superiores a 15 mil euros. O mecanismo é simples e eficaz - os primeiros empréstimos são concedidos com taxas aparentemente razoáveis, mas as renovações e os novos pedidos vêm com juros que podem ultrapassar os 20% anuais. É a espiral do endividamento 4.0.

A Economia do Dinheiro Vivo descobriu que muitas destas plataformas operam num limbo regulatório. Registadas como empresas de tecnologia em vez de instituições financeiras, escapam a parte significativa da supervisão do Banco de Portugal. Os seus algoritmos de risco, protegidos como segredo comercial, tomam decisões que afetam milhares de vidas sem qualquer transparência. Quando questionadas, as empresas argumentam que estão apenas a 'democratizar o acesso ao crédito' - um eufemismo perigoso para a venda de dívida a quem menos condições tem para a pagar.

O Jornal Económico entrevistou antigos colaboradores de uma das maiores fintechs do setor, que descreveram uma cultura corporativa obcecada com métricas de crescimento. 'As equipas comerciais recebiam bónus por cada novo cliente, independentemente da sua capacidade de pagamento', confessou um ex-gestor que pediu anonimato. 'Os alertas do sistema de scoring eram frequentemente ignorados quando interferiam com as metas trimestrais.'

Mas o fenómeno tem uma dimensão social ainda mais preocupante. A ECO analisou os dados geográficos e descobriu que os bairros com maiores taxas de desemprego e menores rendimentos médios são precisamente os que registam maior concentração de utilizadores destas plataformas. Enquanto o governo fala em inclusão financeira, cria-se um apartheid digital onde os mais vulneráveis pagam o preço mais alto pelo dinheiro.

As histórias humanas por trás dos números são as mais reveladoras. Maria, 34 anos, empregada de limpeza, contou ao Dinheiro Vivo como um empréstimo de 300 euros para comprar material escolar para os filhos se transformou numa dívida de 2.500 euros em menos de um ano. 'Pedia um crédito para pagar outro, e assim fui entrando num buraco sem fundo', descreve, com a voz a tremer. 'As mensagens no telemóvel não paravam, sempre com novas ofertas, como se estivessem a torcer-me o braço.'

Os especialistas consultados pela nossa redação alertam para o que chamam de 'gamificação do endividamento'. As aplicações usam técnicas de design comportamental - cores vibrantes, notificações constantes, progress bars que mostram 'o quanto já pode pedir' - para criar uma sensação de urgência e recompensa imediata. É o mesmo mecanismo psicológico das máquinas de casino, agora disfarçado de solução financeira.

A regulação tenta acompanhar o ritmo frenético da inovação, mas move-se a passo de caracol. O Banco de Portugal anunciou recentemente novas diretrizes para o crédito ao consumo, mas os críticos argumentam que chegam tarde e são insuficientes. Enquanto isso, as fintechs continuam a captar investimento internacional - só no primeiro semestre de 2024, levantaram mais de 50 milhões de euros em rondas de financiamento.

O paradoxo é evidente: vivemos na era da informação, mas nunca foi tão fácil tomar decisões financeiras desinformadas. As mesmas tecnologias que nos prometem liberdade e conveniência estão a ser usadas para criar novas formas de dependência. A questão que fica no ar, como um cheque sem fundos, é simples: estamos a construir um futuro financeiro mais inclusivo ou apenas a digitalizar a velha exploração?

Subscreva gratuitamente

Terá acesso a conteúdo exclusivo, como descontos e promoções especiais do conteúdo que escolher:

Tags

  • créditos rápidos
  • Fintechs
  • endividamento
  • regulação financeira
  • tecnologia financeira