Há uma guerra silenciosa a acontecer nos gabinetes dos bancos portugueses, uma batalha que não faz manchetes mas que está a definir o futuro económico de milhares de famílias. Enquanto os principais meios de comunicação se concentram nas taxas de juro e nos índices macroeconómicos, uma realidade mais complexa e perturbadora permanece nas sombras: o labirinto fiscal que transforma o simples ato de pedir um crédito numa odisseia kafkiana.
Os números oficiais pintam um quadro otimista: o crédito à habitação continua a crescer, as empresas investem, a economia parece respirar. Mas os corredores dos balcões bancários contam outra história. Maria, uma empresária de 42 anos do Porto, passou três meses a saltar entre notários, conservatórias e repartições de finanças apenas para conseguir comprovar a origem dos fundos para expandir o seu negócio. "Parece que estamos sempre a provar que não somos criminosos", desabafa, enquanto mostra uma pasta com mais de cem documentos. "Cada vez que preciso de um crédito, sinto que estou a ser julgada antes mesmo de ter a oportunidade de explicar o meu projeto."
Esta realidade burocrática criou um mercado paralelo de "facilitadores" - consultores que cobram fortunas para navegar no emaranhado regulatório. João Silva, um desses consultores, recebe até dez clientes por dia. "As pessoas chegam aqui desesperadas", conta, enquanto organiza dossiês numa sala repleta de pastas. "O sistema tornou-se tão complexo que mesmo os funcionários bancários têm dificuldade em acompanhar todas as mudanças. A última circular do Banco de Portugal sobre prevenção de branqueamento de capitais tem 84 páginas de requisitos."
O fenómeno não se limita aos créditos pessoais ou empresariais. Os empréstimos automóveis, outrora considerados dos mais simples, transformaram-se em processos que podem demorar semanas. A exigência de documentação triplicou nos últimos dois anos, segundo dados internos de três grandes bancos portugueses. E enquanto os prazos se alongam, os custos ocultos multiplicam-se: taxas de análise, comissões de processamento, encargos com certificados e autenticações que poucos antecipam.
Mas a verdadeira tragédia está a acontecer nos créditos às pequenas empresas. Pedro Martins, dono de uma padaria tradicional em Lisboa, viu o seu sonho de expansão desmoronar-se perante a burocracia. "Precisava de 50 mil euros para modernizar o forno e contratar mais dois funcionários. Passei dois meses a reunir documentos, apenas para receber uma negativa porque um dos meus livros de receitas tinha uma rasura." Histórias como a de Pedro repetem-se por todo o país, enquanto as estatísticas continuam a mostrar um aumento do crédito às PMEs.
Os especialistas alertam para o que chamam de "discriminação algorítmica". Os sistemas automatizados de análise de crédito, implementados para agilizar processos, estão na realidade a criar barreiras invisíveis. "Os algoritmos são treinados com dados históricos que refletem preconceitos estruturais", explica a professora Ana Lúcia Santos, especialista em fintech. "Um empreendedor de uma zona rural ou de um bairro periférico tem automaticamente uma pontuação mais baixa, independentemente da viabilidade do seu projeto."
Enquanto isso, os grandes grupos económicos continuam a ter acesso privilegiado ao crédito. Um estudo interno de um banco português, ao qual tivemos acesso, revela que 70% do crédito empresarial vai para apenas 5% dos requerentes - empresas com volume de negócios superior a 50 milhões de euros. "Há duas velocidades no acesso ao financiamento", confirma um gestor bancário que preferiu manter o anonimato. "Para uns, as portas abrem-se facilmente. Para outros, cada pedido é uma via-sacra."
A situação tornou-se tão crítica que algumas associações empresariais começaram a criar fundos próprios de financiamento. "Perdemos a confiança no sistema bancário tradicional", admite o presidente de uma associação do norte do país. "Estamos a criar alternativas porque os nossos associados não conseguem sobreviver à burocracia."
O Banco de Portugal defende que as medidas são necessárias para garantir a estabilidade do sistema financeiro. Num comunicado recente, a instituição sublinhou que "a robustez dos processos de análise de crédito é fundamental para prevenir riscos sistémicos". Mas especialistas independentes questionam se o remédio não está a ser pior que a doença.
Enquanto o debate continua nos gabinetes oficiais, nas ruas a realidade é palpável. Lojas que fecham, projetos que não avançam, sonhos adiados. A burocracia tornou-se o maior obstáculo ao empreendedorismo em Portugal, uma barreira invisível mas intransponível para muitos. E enquanto não se encontrar um equilíbrio entre controlo e agilidade, continuaremos a perder oportunidades de crescimento que o país tanto precisa.
O futuro do crédito em Portugal depende da capacidade de simplificar sem comprometer a segurança. Uma tarefa hercúlea, mas essencial para que a economia não continue a sangrar talento e potencial. Enquanto isso, portugueses como Maria e Pedro continuam a sua batalha diária contra papéis, carimbos e requisitos que parecem multiplicar-se como cogumelos após a chuva.
O labirinto fiscal dos créditos: como os portugueses estão a ser encurralados pela burocracia
