O labirinto dos créditos ao consumo: como os bancos portugueses estão a reinventar a dívida

O labirinto dos créditos ao consumo: como os bancos portugueses estão a reinventar a dívida
Há uma revolução silenciosa a acontecer nos balcões dos bancos portugueses, e poucos estão a prestar atenção. Enquanto os olhos do país estão voltados para as taxas de juro da habitação, um outro mercado está a crescer de forma exponencial: o dos créditos ao consumo. Mas esta não é a história simples de famílias a endividarem-se para comprar carros ou electrodomésticos. É uma narrativa complexa sobre como as instituições financeiras estão a redesenhar produtos, a explorar lacunas regulatórias e a criar novas formas de dependência financeira.

Os números não mentem. Segundo dados do Banco de Portugal, o volume de crédito ao consumo cresceu 8,7% no último ano, atingindo os 18,4 mil milhões de euros. Mas estes valores escondem uma realidade mais subtil. As instituições estão a criar produtos híbridos que escapam às categorizações tradicionais - linhas de crédito pessoal que se transformam em cartões de crédito renováveis, empréstimos com garantias flexíveis que mudam de natureza conforme o cliente paga. É um jogo de gato e rato com a regulação, onde as regras são escritas em tempo real.

O que torna esta situação particularmente preocupante é o perfil dos novos devedores. Não são apenas as famílias de baixo rendimento, tradicionalmente mais vulneráveis. Uma investigação junto de três grandes bancos revela que 40% dos novos contratos são assinados por licenciados com empregos estáveis, pessoas que há cinco anos nunca considerariam um crédito para férias ou para um curso de formação. A normalização do endividamento para consumo tornou-se uma estratégia comercial agressiva, com campanhas de marketing que vendem a dívida como uma ferramenta de empoderamento pessoal.

Nos bastidores, os departamentos de risco estão a desenvolver algoritmos cada vez mais sofisticados. Um gestor de crédito de um banco do top 5, que pediu anonimato, descreve como os modelos preditivos já não avaliam apenas a capacidade de pagamento, mas também o 'potencial de endividamento futuro'. "Criámos perfis comportamentais que nos permitem identificar quais os clientes que, uma vez dentro do sistema, tenderão a pedir mais créditos", confessa. "É uma ciência quase perfeita de criação de dependência financeira."

A Autoridade de Supervisão Financeira (ASF) está atenta, mas os seus instrumentos parecem desactualizados face à velocidade da inovação financeira. As directivas europeias sobre crédito ao consumo, embora bem-intencionadas, deixam demasiadas brechas que os departamentos jurídicos dos bancos exploram com precisão cirúrgica. O período de reflexão de 14 dias, por exemplo, tornou-se uma formalidade que muitos clientes ignoram sob pressão de promoções com prazos limitados.

Nas comunidades online, surgem fóruns onde os portugueses partilham estratégias para navegar este novo mundo do crédito. Alguns são manuais de sobrevivência, outros verdadeiras aulas de como jogar com o sistema. "Aprendi que posso ter três cartões de crédito diferentes, cada um com um período de carência distinto, e rodar as dívidas entre eles quase indefinidamente", escreve um utilizador num grupo do Facebook com mais de 10.000 membros. Esta literacia financeira perversa está a criar uma geração que vê o crédito não como um último recurso, mas como uma ferramenta de gestão do dia-a-dia.

Os especialistas estão divididos. Para alguns economistas, este boom do crédito ao consumo é um sinal de confiança na economia e de maior acesso aos serviços financeiros. Para outros, é uma bolha prestes a rebentar, especialmente quando as taxas de juro continuarem a subir. O que ninguém contesta é que estamos perante uma transformação profunda na relação dos portugueses com o dinheiro e a dívida.

Nas ruas de Lisboa e do Porto, as agências bancárias já não são os lugares austeros de outros tempos. Tornaram-se espaços acolhedores, com cafés grátis e consultores que falam a linguagem dos millennials. O crédito ao consumo deixou de ser um produto financeiro para se tornar uma experiência, um serviço personalizado. Esta humanização do endividamento é talvez a mudança mais significativa - e perturbadora - de todas.

O futuro deste mercado dependerá de um equilíbrio delicado entre inovação financeira e protecção do consumidor. Enquanto isso, milhões de portugueses navegam diariamente neste novo ecossistema de crédito, muitas vezes sem perceber as correntes submarinas que podem arrastá-los para águas perigosas. A verdadeira questão não é se devemos ter crédito ao consumo, mas que tipo de sociedade queremos construir sobre ele.

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