Quando Maria, uma arquiteta de 32 anos, precisou de financiar o seu primeiro escritório, não se dirigiu ao banco onde tem conta desde os 18. Em vez disso, abriu o portátil e explorou três plataformas digitais de crédito que prometiam resposta em 48 horas. A sua história reflecte uma mudança silenciosa que está a transformar o mercado de crédito português, onde as soluções tradicionais já não são a única opção.
As fintechs de crédito conquistaram terreno de forma impressionante nos últimos dois anos. Dados do Banco de Portugal mostram que o volume de empréstimos concedidos por estas plataformas cresceu 47% em 2023, num momento em que a banca tradicional apertou os critérios de concessão. Esta divergência cria um cenário paradoxal: enquanto os bancos enfrentam pressões regulatórias e aumentam as exigências, as alternativas digitais simplificam processos e aceleram decisões.
O segredo destas novas empresas está na tecnologia que utilizam para avaliar risco. "Analisamos milhares de pontos de dados que os bancos ignoram", explica Sofia Mendes, fundadora de uma startup de crédito ao consumo. "O histórico de pagamentos de serviços, padrões de gastos e até a estabilidade profissional são considerados de forma diferente. Não estamos apenas a replicar modelos antigos - estamos a reinventar a forma como se avalia a capacidade de pagamento."
Mas esta revolução não acontece sem riscos. Especialistas alertam para a necessidade de equilíbrio entre inovação e protecção ao consumidor. "A facilidade de acesso ao crédito pode tornar-se um problema se não for acompanhada de educação financeira", adverte o professor Carlos Silva, especialista em finanças da Universidade Nova. "Estamos a testemunhar uma democratização do crédito, mas precisamos garantir que não se transforma numa armadilha para os mais vulneráveis."
O crédito habitação, tradicionalmente o parente pobre da inovação financeira, começa também a sentir os ventos de mudança. Plataformas que permitem comparação instantânea de ofertas entre múltiplos bancos já pouparam aos portugueses milhões em spreads, segundo estimativas do sector. A transparência forçada pelo digital está a obrigar os bancos a repensarem estratégias que permaneciam inalteradas há décadas.
Para as pequenas e médias empresas, a transformação é ainda mais significativa. O crédito tradicional continua a ser um obstáculo para muitos negócios viáveis, especialmente fora dos grandes centros urbanos. "Recebemos dezenas de pedidos de empresários que foram recusados pelos bancos apesar de terem negócios sólidos", conta Miguel Santos, responsável por uma plataforma de crowdfunding empresarial. "Muitas vezes, o problema não é a viabilidade do projecto, mas a falta de flexibilidade dos modelos de análise dos bancos."
O Banco de Portugal tem acompanhado esta evolução com atenção crescente. As novas directrizes para instituições de crédito alternativas reflectem o reconhecimento de que o mercado se diversificou irreversivelmente. "O desafio regulatório é promover a inovação sem comprometer a estabilidade financeira", explica uma fonte próxima do processo. "Estamos a construir uma estrutura que acomode diferentes modelos de negócio enquanto protege os consumidores."
Os dados mais recentes sugerem que os portugueses estão a adaptar-se rapidamente a este novo ecossistema. Um estudo da DECO revela que 38% dos inquiridos consideraram alternativas digitais ao crédito bancário no último ano, um aumento significativo face aos 12% registados em 2021. A geração mais jovem lidera esta mudança, mas não é a única: 27% dos maiores de 55 anos já utilizaram plataformas de crédito digital.
O futuro aponta para uma integração ainda maior entre o tradicional e o digital. Vários bancos estabelecidos estão a desenvolver parcerias com fintechs ou a criar as suas próprias soluções digitais. "A coexistência é inevitável", prevê Ana Lopes, analista financeira. "Os bancos trazem a confiança e a escala, as fintechs trazem a agilidade e a inovação. Os consumidores é que saem a ganhar com esta competição."
Enquanto isso, no terreno, histórias como a de Maria multiplicam-se. "Consegui o financiamento em 36 horas, com condições melhores do que qualquer banco me oferecia", conta. "O processo foi totalmente digital, sem papelada, sem reuniões intermináveis. Senti que estava a ser avaliada pela minha capacidade real, não por critérios ultrapassados."
Esta transformação do crédito em Portugal vai além de meras mudanças tecnológicas - representa uma redefinição fundamental da relação entre instituições financeiras e cidadãos. Num país historicamente cauteloso em relação ao endividamento, a emergência de novas formas de acesso ao crédito está a reescrever as regras do jogo, criando oportunidades mas também novos desafios que exigirão vigilância constante de reguladores e consumidores.
O futuro do crédito em Portugal: entre a banca tradicional e as fintechs que desafiam o sistema