Seguros

Energia

Serviços domésticos

Telecomunicações

Saúde

Segurança Doméstica

Energia Solar

Seguro Automóvel

Aparelhos Auditivos

Créditos

Educação

Paixão por carros

Seguro de Animais de Estimação

Blogue

O paradoxo da saúde digital: quando os dados nos curam e nos vigiam

Num mundo onde cada passo, cada batimento cardíaco e cada hora de sono podem ser transformados em dados, a saúde deixou de ser apenas uma questão de consultas e receitas. Tornou-se um campo minado de promessas tecnológicas e dilemas éticos que poucos se atrevem a explorar. Em Portugal, enquanto aplicações de bem-estar proliferam nas lojas digitais, os especialistas começam a questionar: estamos a construir um futuro mais saudável ou uma sociedade permanentemente monitorizada?

A revolução começou discretamente, com relógios que contavam passos e aplicações que registavam ciclos de sono. Hoje, os dispositivos vestíveis prometem detetar arritmias cardíacas, prever crises de ansiedade e até antecipar surtos de gripe através de padrões de temperatura corporal. Nas farmácias portuguesas, já se vendem esfigmomanómetros que enviam leituras diretamente para o telemóvel do médico, e nas consultas de nutrição, os diários alimentares em papel deram lugar a fotografias analisadas por inteligência artificial.

Mas por trás desta conveniência aparentemente inofensiva esconde-se uma realidade mais complexa. As empresas que desenvolvem estas tecnologias acumulam quantidades astronómicas de dados de saúde – informações que, na União Europeia, são consideradas especialmente sensíveis e protegidas pelo RGPD. O paradoxo é evidente: para nos cuidarmos melhor, temos de nos expor mais. E essa exposição tem consequências que vão muito além da esfera individual.

Investigadores do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto alertam para o que chamam de "medicalização da vida quotidiana". A constante monitorização transforma variações normais do organismo em potenciais problemas de saúde, aumentando a ansiedade e sobrecarregando os serviços médicos com falsos positivos. Um estudo recente revelou que 40% dos utilizadores de smartwatches com funções cardíacas acabaram por marcar consultas desnecessárias devido a alertas enganosos dos dispositivos.

O lado mais sombrio desta revolução digital emerge quando seguimos o rasto dos dados. As informações de saúde são extremamente valiosas para seguradoras, empregadores e empresas de marketing. Nos Estados Unidos, já existem casos documentados de pessoas que viram os prémios de seguro aumentarem depois de os seus dispositivos detetarem padrões de sono irregulares. Em Portugal, a legislação protege contra estes abusos, mas a fronteira é ténue e a tecnologia avança mais rápido do que a regulação.

Nas salas de operações dos hospitais portugueses, a inteligência artificial já assiste cirurgiões em procedimentos complexos, analisando imagens em tempo real e sugerindo melhores abordagens. Nos laboratórios, algoritmos processam milhões de combinações moleculares para acelerar a descoberta de novos medicamentos. Estes avanços são reais e têm o potencial de salvar vidas, mas também levantam questões profundas sobre a privacidade e a autonomia do doente.

O maior desafio, segundo especialistas em ética médica consultados pela VISÃO, não é tecnológico, mas filosófico: como equilibrar o benefício coletivo da partilha de dados com o direito individual à privacidade? Os sistemas de saúde pública poderiam tornar-se extraordinariamente eficientes se tivessem acesso a dados em tempo real da população, antecipando surtos e alocando recursos onde são mais necessários. Mas esse acesso exigiria um nível de vigilância que muitas sociedades livres considerariam inaceitável.

Enquanto este debate decorre em gabinetes e comissões éticas, os portugueses adotam cada vez mais estas tecnologias. Uma pesquisa do Observador revelou que 62% dos adultos entre 30 e 50 anos utilizam regularmente pelo menos uma aplicação relacionada com saúde. A maioria não lê os termos e condições, não sabe quem acede aos seus dados nem como são utilizados. Confiam, porque a conveniência fala mais alto do que as preocupações abstratas sobre privacidade.

O futuro que se desenha é ambivalente. Por um lado, a medicina personalizada promete tratamentos adaptados ao nosso código genético e estilo de vida específico. Por outro, essa personalização exige uma quantidade de dados íntimos sem precedentes na história da humanidade. A linha entre cuidado e controlo nunca foi tão ténue, e a sociedade portuguesa terá de decidir onde a quer traçar.

Nas palavras de uma investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, "estamos a construir a maior base de dados de saúde da história, mas não estamos a fazer as perguntas mais importantes: quem controla esta informação, quem beneficia dela, e que sociedade queremos criar com ela". A resposta a estas questões determinará não apenas o futuro da saúde em Portugal, mas o próprio significado de liberdade numa era de dados omnipresentes.

Tags