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O paradoxo do crédito: como os bancos emprestam menos enquanto as famílias pedem mais

Nos corredores silenciosos dos bancos portugueses, um paradoxo está a ganhar forma. Enquanto os dados oficiais mostram uma procura crescente por crédito às famílias, os gestores de risco sussurram sobre critérios de aprovação que se apertam como um torno. Esta contradição não é um acidente estatístico, mas o sintoma de uma transformação profunda no sistema financeiro nacional.

Nos últimos trimestres, o Banco de Portugal tem registado aumentos consistentes no volume de novos empréstimos à habitação. À primeira vista, parece um sinal de saúde económica: as famílias sentem-se confiantes para investir, os bancos têm liquidez para financiar. Mas basta raspar ligeiramente a superfície para descobrir uma realidade mais complexa.

"Estamos a aprovar menos 30% dos pedidos do que há dois anos", confessa-nos um diretor de crédito de um banco sistémico, sob condição de anonimato. "Os números totais sobem porque os montantes solicitados são maiores, mas a taxa de rejeição disparou."

Este fenómeno tem uma explicação dupla. Por um lado, a subida das taxas de juro do BCE forçou os bancos a serem mais conservadores. Por outro, a memória traumática dos créditos malparados da última crise ainda assombra as salas de reuniões. O resultado é um sistema que diz sim apenas aos candidatos mais sólidos, deixando uma faixa cada vez maior da população fora do mercado.

O que poucos percebem é como esta seletividade está a remodelar o território nacional. As cidades médias do interior, onde os rendimentos são geralmente mais baixos, estão a ver o acesso ao crédito contrair-se dramaticamente. Em contrapartida, Lisboa e Porto concentram uma percentagem crescente da finança disponível, alimentando bolhas imobiliárias que parecem imunes à lógica económica.

"Há uma migração silenciosa de capital do interior para o litoral através dos mecanismos de crédito", explica a economista Maria Santos, que tem estudado este fenómeno. "Os bancos argumentam que estão apenas a seguir critérios objetivos de risco, mas o efeito colateral é uma acentuação das desigualdades regionais."

Esta não é, contudo, a história completa. Paralelamente ao aperto no crédito tradicional, assistimos ao florescimento de alternativas que há uma década seriam consideradas marginais. As fintechs de empréstimo entre particulares, os crowdfundings imobiliários e até os esquemas informais de poupança rotativa estão a ganhar terreno precisamente nos segmentos excluídos pelo sistema bancário convencional.

O caso das fintechs é particularmente revelador. Enquanto os bancos tradicionais se focam em clientes com históricos creditícios imaculados, estas startups estão a desenvolver algoritmos que analisam dezenas de variáveis não convencionais - desde padrões de gastos até avaliações em plataformas de freelancing. O resultado são taxas de aprovação que chegam a ser o dobro das dos bancos para certos segmentos, ainda que a custo de juros significativamente mais elevados.

"Estamos a testemunhar uma bifurcação do mercado de crédito", nota o analista financeiro Pedro Mendes. "De um lado, os bancos tradicionais servem uma elite económica com condições privilegiadas. Do outro, um ecossistema emergente atende a quem fica de fora, mas a preços que questionam a sustentabilidade a longo prazo."

Esta divisão tem implicações que vão muito além da esfera financeira. A dificuldade em aceder a crédito à habitação está a adiar a formação de famílias entre os jovens urbanos. Nas zonas rurais, impede a renovação de explorações agrícolas e acelera o despovoamento. E em todo o país, limita a capacidade das famílias para investir em eficiência energética, perpetuando a dependência de combustíveis fósseis.

O Banco de Portugal está atento a estes desenvolvimentos, mas os seus instrumentos de regulação foram concebidos para um mundo financeiro mais simples. Como regular plataformas que operam na fronteira entre o bancário e o tecnológico? Como garantir proteção aos consumidores sem estrangular a inovação? Estas são perguntas para as quais ainda não há respostas satisfatórias.

Enquanto isso, nas cozinhas portuguesas, as conversas sobre crédito ganham um tom diferente. Já não se trata apenas de comparar spreads ou negociar comissões. Agora discute-se qual banco ainda considera candidatos com contratos a termo, que fintech oferece condições menos penalizadoras para quem tem um histórico de crédito manchado, ou se vale a pena esperar mais um ano para tentar a aprovação tradicional.

O paradoxo que começou nos gabinetes dos gestores de risco transformou-se numa realidade quotidiana para milhões de portugueses. E como todos os paradoxos verdadeiros, não se resolve com ajustes técnicos ou otimizações marginais. Exige uma reimaginação fundamental de como o crédito funciona numa sociedade que mudou mais depressa do que as suas instituições financeiras.

O que está em jogo não é apenas a saúde do sistema bancário, mas a própria textura da sociedade portuguesa. Porque o crédito, no fim de contas, não é apenas dinheiro emprestado. É a materialização da confiança no futuro. E quando esse futuro se torna inacessível para uma parte significativa da população, todos perdemos.

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