O mistério dos créditos que ninguém fala: como as pequenas empresas estão a ser estranguladas
Nos últimos meses, enquanto os grandes bancos anunciam lucros recorde e o governo festeja a descida da inflação, há uma realidade paralela que escapa aos holofotes mediáticos. Nas traseiras das lojas de bairro, nos escritórios improvisados de startups e nas linhas de produção das PMEs, um silêncio preocupante vai crescendo. É o silêncio dos créditos que não chegam, das portas que se fecham e das oportunidades que evaporam antes mesmo de poderem ser nomeadas.
Esta investigação começou com uma pergunta simples, feita a dezenas de empresários de norte a sul do país: "Quando foi a última vez que conseguiu financiamento sem ter de hipotecar a casa dos pais?" As respostas, quando existiam, vinham carregadas de um cansaço que transcende o físico. "Há dois anos", confessou-me Maria, dona de uma mercearia tradicional no Porto que tenta sobreviver à invasão das grandes superfícies. "Desde então, cada renovação de linha de crédito é uma batalha épica, com mais garantias exigidas e menos compreensão para as flutuações sazonais do negócio."
O paradoxo é gritante. Os dados oficiais mostram que o crédito à economia está a crescer, mas essa estatística esconde uma segmentação brutal. Enquanto as grandes corporações e o imobiliário de luxo continuam a ter acesso facilitado ao dinheiro, o tecido empresarial que realmente emprega a maioria dos portugueses está a ser progressivamente asfixiado. Os critérios de avaliação tornaram-se tão rígidos que apenas projetos quase garantidos de sucesso conseguem passar pelo crivo bancário, o que, em economia real, significa quase nenhum.
O que descobri vai além da habitual burocracia. Existe um sistema paralelo de "recomendações" e "intermediações" que determina quem acede ao financiamento. Conversei com um antigo gestor de risco de um banco sistémico que pediu anonimato: "Há listas internas de setores 'indesejáveis'. Restauração tradicional, comércio local, pequena manufactura... São automaticamente classificados como alto risco, independentemente da saúde financeira específica do negócio."
Esta discriminação setorial cria distorções perigosas. Enquanto um café com 50 anos de história não consegue 10.000 euros para renovar as esplanadas, um projeto tecnológico com um PowerPoint brilhante e zero receitas pode levantar milhões. O resultado é uma economia cada vez mais desequilibrada, onde setores fundamentais para a coesão territorial e social são deixados à sua sorte.
Mas há mais. A digitalização dos processos, vendida como democratização do acesso, está a criar novas barreiras. Muitos pequenos empresários, especialmente fora dos grandes centros urbanos, não dominam as ferramentas digitais necessárias para navegar nos complexos portais de candidatura a financiamento. "Enviei a mesma documentação três vezes", contou-me António, produtor de azeite no Alentejo. "Cada vez diziam que faltava algo diferente. Acabei por desistir e pedir emprestado a familiares, com a vergonha que isso traz."
O Estado, através dos vários programas de apoio anunciados com pompa e circunstância, acaba por ser cúmplice deste sistema. Os fundos europeus, em particular, estão desenhados para beneficiar quem já tem recursos para pagar consultores especializados em preencher candidaturas de 200 páginas. As microempresas, que precisariam mais desse apoio, ficam pelo caminho, incapazes de competir nesta "indústria da candidatura" que floresceu à sombra dos fundos comunitários.
E depois há o fenómeno mais silencioso e talvez mais perigoso: o crédito informal. À medida que os canais formais se fecham, cresce a rede de empréstimos entre particulares, muitas vezes a taxas usurárias disfarçadas de "ajuda entre amigos". Encontrei casos de empresários que pagam juros de 15% a 20% a particulares, porque era essa a única forma de pagar aos fornecedores e manter as portas abertas. Um ciclo vicioso que, quando rebentar, vai criar ondas de choque em cadeia.
A solução não passa necessariamente por mais dinheiro público injetado no sistema. Passa por repensar radicalmente os critérios de avaliação de risco, por formar os pequenos empresários na navegação do labirinto financeiro, e por criar mecanismos que realmente democratizem o acesso ao crédito. Alguns bancos mais pequenos e cooperativas de crédito já experimentam modelos alternativos, com avaliações mais holísticas que consideram não apenas números históricos, mas também o potencial futuro e o impacto social do negócio.
O que está em jogo vai muito além da saúde financeira das empresas. Está em jogo a diversidade da nossa economia, a vitalidade dos nossos centros urbanos e rurais, e a própria ideia de mobilidade social. Enquanto continuarmos a medir o sucesso do crédito à economia por estatísticas agregadas que escondem mais do que revelam, estaremos a construir um país onde apenas alguns têm direito a tentar.
Nas próximas semanas, acompanharei três pequenos empresários na sua odisseia para obter financiamento. Do pedido inicial à decisão final, seja ela qual for. Porque por trás de cada estatística há uma história, e por trás de cada recusa há um sonho adiado. E uma economia que não sabe financiar os seus sonhos é uma economia que já desistiu do futuro.
Esta investigação começou com uma pergunta simples, feita a dezenas de empresários de norte a sul do país: "Quando foi a última vez que conseguiu financiamento sem ter de hipotecar a casa dos pais?" As respostas, quando existiam, vinham carregadas de um cansaço que transcende o físico. "Há dois anos", confessou-me Maria, dona de uma mercearia tradicional no Porto que tenta sobreviver à invasão das grandes superfícies. "Desde então, cada renovação de linha de crédito é uma batalha épica, com mais garantias exigidas e menos compreensão para as flutuações sazonais do negócio."
O paradoxo é gritante. Os dados oficiais mostram que o crédito à economia está a crescer, mas essa estatística esconde uma segmentação brutal. Enquanto as grandes corporações e o imobiliário de luxo continuam a ter acesso facilitado ao dinheiro, o tecido empresarial que realmente emprega a maioria dos portugueses está a ser progressivamente asfixiado. Os critérios de avaliação tornaram-se tão rígidos que apenas projetos quase garantidos de sucesso conseguem passar pelo crivo bancário, o que, em economia real, significa quase nenhum.
O que descobri vai além da habitual burocracia. Existe um sistema paralelo de "recomendações" e "intermediações" que determina quem acede ao financiamento. Conversei com um antigo gestor de risco de um banco sistémico que pediu anonimato: "Há listas internas de setores 'indesejáveis'. Restauração tradicional, comércio local, pequena manufactura... São automaticamente classificados como alto risco, independentemente da saúde financeira específica do negócio."
Esta discriminação setorial cria distorções perigosas. Enquanto um café com 50 anos de história não consegue 10.000 euros para renovar as esplanadas, um projeto tecnológico com um PowerPoint brilhante e zero receitas pode levantar milhões. O resultado é uma economia cada vez mais desequilibrada, onde setores fundamentais para a coesão territorial e social são deixados à sua sorte.
Mas há mais. A digitalização dos processos, vendida como democratização do acesso, está a criar novas barreiras. Muitos pequenos empresários, especialmente fora dos grandes centros urbanos, não dominam as ferramentas digitais necessárias para navegar nos complexos portais de candidatura a financiamento. "Enviei a mesma documentação três vezes", contou-me António, produtor de azeite no Alentejo. "Cada vez diziam que faltava algo diferente. Acabei por desistir e pedir emprestado a familiares, com a vergonha que isso traz."
O Estado, através dos vários programas de apoio anunciados com pompa e circunstância, acaba por ser cúmplice deste sistema. Os fundos europeus, em particular, estão desenhados para beneficiar quem já tem recursos para pagar consultores especializados em preencher candidaturas de 200 páginas. As microempresas, que precisariam mais desse apoio, ficam pelo caminho, incapazes de competir nesta "indústria da candidatura" que floresceu à sombra dos fundos comunitários.
E depois há o fenómeno mais silencioso e talvez mais perigoso: o crédito informal. À medida que os canais formais se fecham, cresce a rede de empréstimos entre particulares, muitas vezes a taxas usurárias disfarçadas de "ajuda entre amigos". Encontrei casos de empresários que pagam juros de 15% a 20% a particulares, porque era essa a única forma de pagar aos fornecedores e manter as portas abertas. Um ciclo vicioso que, quando rebentar, vai criar ondas de choque em cadeia.
A solução não passa necessariamente por mais dinheiro público injetado no sistema. Passa por repensar radicalmente os critérios de avaliação de risco, por formar os pequenos empresários na navegação do labirinto financeiro, e por criar mecanismos que realmente democratizem o acesso ao crédito. Alguns bancos mais pequenos e cooperativas de crédito já experimentam modelos alternativos, com avaliações mais holísticas que consideram não apenas números históricos, mas também o potencial futuro e o impacto social do negócio.
O que está em jogo vai muito além da saúde financeira das empresas. Está em jogo a diversidade da nossa economia, a vitalidade dos nossos centros urbanos e rurais, e a própria ideia de mobilidade social. Enquanto continuarmos a medir o sucesso do crédito à economia por estatísticas agregadas que escondem mais do que revelam, estaremos a construir um país onde apenas alguns têm direito a tentar.
Nas próximas semanas, acompanharei três pequenos empresários na sua odisseia para obter financiamento. Do pedido inicial à decisão final, seja ela qual for. Porque por trás de cada estatística há uma história, e por trás de cada recusa há um sonho adiado. E uma economia que não sabe financiar os seus sonhos é uma economia que já desistiu do futuro.